quinta-feira, 1 de julho de 2010

Caetano José da Silva Souto-Maior, um alentejano na corte de D.João V e uma figura popular de Lisboa - 6

Carlos Luna



Soneto a uma dama que enviou, zangada, ao poeta, uns escritos que deste recebera... e que ele queimou.















Morrei, doces despojos, que algum dia
fostes de Clori(*) persuasão gloriosa,
que a chama, ainda que triste, venturosa,
vai conservar no fogo a idolatria.


Para desprezo ser de Clori ímpia
basta arder nessa luz pouco formosa,
porque da chama, que é menos preciosa,
não fica sendo a cinza menos fria.


Não fostes cridos, viestes desprezados,
e das iras de Clori como objectos
sereis sempre uma injúria aos meus cuidados.


Eu só posso mostrar nestes afectos,
fazendo-vos agora desgraçados,
que sois constantes, e que sois discretos.

______

(*) Clóri: deusa grega das flores; a "Mulher".


Poema a uma dama que o poeta não quis ver, depois dela ler alguns versos.


Para venceres basta um só portento,
pois não foram em tudo sempre claras
as vitórias, se acaso acompanharas
com outro encanto o numeroso acento.


Se a minha vida, e o meu entendimento
já dos teus versos são vítimas raras,
serias, se o resplendor não retiraras
menos avara, e eu menos atento.


Outro espírito influi reverente
se hás-de mostrar teu rosto esclarecido,
que um, que tinha, está preso felizmente.


Ou cesse o agrado harmónoco do ouvido,
que hei-de expor a teus olhos indecente
sem mais uma alma, ou menos um sentido.


Soneto dedicado a Francisco Dionísio de Almeida, morto na juventude.

Reduzir esta vida à ombra escura,
na mais discreta, e mais florida idade,
é da morte fatal temeridade
com que infama os decretos da Ventura.


Que avisos, ou que exemplos nos procura,
se ofendido o discurso da impiedade,
toda a ira, a que a perda nos persuade,
faz esquecer o horror da sepultura?


Inveja a Parca o raro entendimento
que agora nos roubou, e ao golpe astuto
sirva de injúria o mesmo monumento.


Porque ´inda que o morrer seja estatuto,
da saudade consegue o sentimento
que pareça vingança o que é tributo.

Soneto dedicado à morte do jovem fidalgo Marquês de Gouveia.

Não extingue da morte o atrevimento
em Múcio(*) excelso a ilustre heroicidade,
muda-lhe só na iníqua austeridade
os cultos do palácio ao monumento.


Rendeu-lhe aclamações o orbe atento,
e hoje o busca no túmulo a saudade,
mas tão distinto o excesso na vontade
quanto vai da lisonja ao sentimento.

Mas intenta triunfar a morte dura,
que o afecto triste do sepulcro fia
na saudosa atenção à fé mais pura.


A memória consagra a tirania,
porque entregue a lembrança à sepultura
faz sempre religiosa a idolatria.
________

(*) Múcio: herói da Antiga Roma.

Soneto dedicado à espada de Pedro Mascarenhas, nobre guerreiro, enfim 

Pendurêa(*) entre louros infinitos
Mascarenhas, o grande, a heróica espada:
porque em ara imortal seja adorada,
troque o mundo os assombros pelos ritos.


Se inveja foi dos Césares invictos,
deixe hoje na razão imaginada
a série dos prodígios, que admirada
não pode ser no ardente dos conflitos.


Cause respeito, se causou desmaio,
que admirado, e rendido eu já contemplo
Pisuerga, Pirinéu, Ebro, e Moncaio.


Descanse a espada, e a Fama no seu templo
em ídolo converta o que foi raio,
chegue a fazer deidade o que era exemplo.
_________

(*) arcaísmo.



Soneto a Afonso de Albuquerque, conquistador português na Índia, numa

ocasião em que, para salvar uma jovem indiana, deixou que se perdesse,

num naufrágio, a carga preciosa.



Não me alteras, oh mar, sempre violento

na fúria destas ondas repetida,

se estou, sendo remédio de uma vida,

contra todo o furor deste elemento.



Nos estragos me adquires novo alento,

pois ficamos com glória esclarecida,

eu assunto da fama encarecida,

tu da riqueza avaro monumento.



Pereça a oriental preciosidade,

e exista a honra da feliz violência,

que foi maior que a dita a adversidade.



Porque fica, apesar desta inclemência,

superado o interesse da piedade,

e a desgraça vencida da inocência.

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