terça-feira, 20 de julho de 2010

Criança, uma obra em aberto - Abuso sexual


Clara Castilho



Linhas orientadoras para actuação em casos de indícios de abuso sexual de crianças e jovens

Em cerimónia na Casa Pia de Lisboa, foi lançado no dia 14 de Julho este livro, distribuído a técnicos que trabalham nestas áreas e resultante do trabalho de vários anos de uma larga equipa multidisciplinar, sob a orientação de Tilman Furniss.

Esperemos que possa contribuir para que, atempadamente, se possam evitar situações dramáticas como as que ocorreram há anos.

No entanto, é preciso não esquecer que a maioria dos abusos sexuais ocorre dentro de portas, dentro da própria família ou vindos de pessoas que com ela se relacionam muito proximamente !!!

Tilman Furniss (professor da Universidade Muster, Alemanha, e Tavistock Clinic, de Londres) tem-se deslocado a Portugal desde há, pelo menos, 10 anos, para levar a cabo acções de formação, duas vezes ao ano, de 4 dias. Estou certa que da sua vasta experiência alguma coisa ficou e que estaremos mais atentos aos indícios que poderão apontar para a ocorrência de abusos sexuais.

Tudo isto me faz lembrar o menino L., de 8 anos na altura, que segui em apoio psicoterapêutico. Da mãe nada se sabia, o pai estava em cura de desintoxicação, uma tia recebia-o ocasionalmente aos fins de semana, mas mostrava-lhe claramente que preferia o seu irmão, com ele também a viver numa instituição. L. parecia viver num mundo da lua, as aprendizagens escolares nada lhe diziam. Fazia uns desenhos bonitos e pormenorizados e com bom sentido estético.

A certa altura do apoio dado na minha instituição, começámos a juntar várias indicadores e acabámos por suspeitar de um abuso sexual. Feita a denúncia, tal foi confirmado. No apoio comigo, o L. não era capaz de falar do assunto. Não me olhava nos olhos, escondia-se debaixo da camilha da mesa que tenho na minha sala, e aí montava brincadeiras em que havia meninos abandonados e perseguidos. Eu ia falando com ele, inventando novas personagens reparadoras que davam um rumo diferente às suas histórias.

O tempo foi passando, fomos a tribunal. Aí tive que falar com ele sobre o que lá ia fazer. O que podemos dizer a uma criança a quem lhe aconteceu tal coisa, que teve que sofrer operações cirúrgicas para que o seu organismo pudesse recuperar e ficar mais equilibrado? Como lhe podemos prometer que o “mau” vai ser castigado?

Vai alguma vez esquecer? O que vai fazer da sua revolta ?

Os anos passaram. L. procura-me regularmente, aí de 2 em 2 meses, sempre sem avisar. Continua na instituição, pois não se verificaram condições para que alguém da família ficasse com ele (o irmão foi viver com a tia ...). Fala de alguns projectos relacionados com os estudos e da futura profissão. Não é capaz de falar de emoções. Mas a sua ida lá corresponde a uma necessidade de um afecto, de um calor humano, de um mimo. Quer sempre lanchar. Como se encher o estômago fosse encher a alma. Sinto que está tudo antes das palavras, da capacidade de dar nome às coisas. Sei que fui importante na sua vida, terei sido uma “tutora de resiliência” (Cyrulnuk).

Na semana passada veio com um colega, estava eu mesmo a sair. Peguei neles e fomos lanchar à beira rio. Riam-se imenso, encabulados, estranhando a minha companhia. Devoraram dois bolos cada um e uma coca-cola. Tentei conversar de coisas do dia-a-dia, férias à porta (mas que férias as deles?), telemóveis, professores chatos, sei lá. E lá se foram, pareciam satisfeitos. E eu também, apesar de ter faltado a um compromisso. Mas este compromisso que tenho para com o L. está acima de tudo, nunca vai desaparecer.

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