terça-feira, 20 de julho de 2010
Novas Viagens na Minha Terra
Manuela Degerine
Capítulo LIV
Décima quinta etapa: de S. João da Madeira ao Porto (continuação)
Maria volta a acelerar. Eu prossigo no meu ritmo. Converso, de vez em quando, com senhoras, geralmente idosas. Ah, antigamente, quando calhava, não andava aqui de dia, sachava de noite, tinha bons olhos, boas pernas, também ia ao Porto, como a menina, de dia trabalhava por conta de outros, se havia trabalho, semeava, regava, trazia pesos à cabeça, agora tudo me custa, os medicamentos são caros, vou de táxi ao hospital, até para morrer faz falta dinheiro. Fala do senhor Socras, penso que é política local, algum presidente de junta – acabo por compreender que é o primeiro-ministro. Conversamos há dez minutos, cumpre eu prosseguir a caminhada, para Maria não se impacientar, para não chegar tarde ao Porto, portanto não pergunto se, na opinião dela, o senhor Socras sabia quando disse que não sabia do negócio PT-TVI. Com este andar despachado não conhecerei o povo do meu país...
O povo?... Sobressalta-se outra vez o especialista leitor. Qual o significado do meu significante? Quem é povo? São todos os portugueses? É o povo oposto à burguesia? (E o que será burguesia?) O povo faz trabalho manual? A classe média alta, a classe média baixa fazem parte do povo? Ou o povo vive no campo e a classe média na cidade? (Aqui, como temos visto, não há portas entre campo e cidade...) Sociólogos da minha terra, vós que tão bem conheço, perdoai esta simplificação. Limito-me a citar e repetir, nesta – agora confessada – preguiça conceptual: uso a palavra que Almeida Garrett empregava. Nós, que somos a prosa vil da Nação, nós não entendemos a poesia do povo (Viagens na Minha Terra, capítulo XLII). Eu apenas caminho em busca desta poesia. Há piores objectivos de caminhada, não há?...
Pouco antes de chegar a Lourosa, deixou de chover há vinte minutos, paro, arrumo a capa e o blusão porém, apenas concluída a operação, algo demorada, pois a minha mochila, sendo simples, é no uso complicada – já recomeçou a chover. Volto a largar a mochila, vestir o blusão, pôr de novo a mochila e, por cima, colocar a capa. Depois disto, algo apressada, no cruzamento, não reparo numa seta. Quinhentos metros mais adiante, não vendo sinalização, deduzo que me enganei, volto portanto atrás, errada dedução: encontrava-me no bom caminho. Recomeço.
Em Lourosa caminho à beira da N1, durante alguns metros, numa zona mais ou menos habitada. Dali a pouco, já fora da N1, o percurso faz ziguezagues, sobe e desce, passa por debaixo de uma via rápida e depois ao lado de uma capela. Começa a chover com força; pergunto a uma senhora se posso abrigar-me no pátio. Há uns passaritos, que não conheço, pretos e brancos, a saltitar, muito contentes, à chuva. A senhora tem barba e prepara o almoço, uma espécie de tortilha, para uma rapariga – deve ser a filha.
Maria telefona de um café.
- Onde estás?
Consulto o roteiro. Via rápida, capela...
- Creio que passei há pouco a capela de Santa Rita.
- Já?!... Estou no café ao lado da capela. Espera por mim.
Havia um café? Não o vi. A chuva começa a diminuir, vou esperar para a rua. Um quarto de hora. Meia hora. É impossível alguém, ainda menos a Maria, levar tanto tempo... O que terá acontecido? Torceu um pé?... Espero mais um quarto de hora. Deduzo que houve um engano. Recomeço a caminhar.
Duzentos metros mais adiante, descubro a capela de Santa Rita, vejo o café Grijó, passo debaixo da via rápida... Enganei-me, portanto. Pensei que a primeira capela era a de Santa Rita. Portanto a Maria, que estava mais à frente, como era lógico que estivesse, não me podia encontrar. E o telefone da minha companheira de vadiagem não recebe chamadas no território português; não posso portanto avisá-la. Acelero o passo, embora consciente de, tendo eu esperado três quartos de hora, não conseguir apanhá-la, por mais que corra. Dali a pouco, pára um carro.
- A senhora vai para Santiago?
- Vou...
- A sua amiga está além, muito aflita e nervosa, quer apanhar a camioneta... Posso levá-la até ao pé dela?
- Encontra-se muito longe?
- Não...
- Então vou a pé.
- Eu volto para lá... Quer que lhe diga alguma coisa?
- Diga que não estou longe!
Agradeço ao simpático senhor, acelero outra vez o passo. Encontro Maria ainda no centro de Grijó – a quinhentos metros dali. Furiosa: anda há hora e meia às voltas. Almoçou, foi e veio. Explico-lhe a confusão. Há duas capelas, duas vias rápidas, enganei-me, pensava que passara a segunda quando, na verdade, havia passado a primeira. A chuva, as conversas, as hesitações, os impermeáveis: avancei devagar. E também esperei durante três quartos de hora.
Maria sente-se desmoralizada: dói-lhe a perna, rasgou a capa, só falta continuar a chover, ganha uma pneumonia, o prémio da obstinação, depois ser atacada, o prémio da estupidez.
- Apanhamos a camioneta?
Eu, não, mas parece-me preferível ela apanhá-la, por isso me despeço e a deixo na paragem. Telefonei para os bombeiros, que nos acolhem no Porto; encontramo-nos lá. Dou-lhe um beijinho. Vai, descansa. Para estares amanhã fresca como uma sardinha.
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