terça-feira, 6 de julho de 2010
Novas Viagens na Minha Terra-40
Manuela Degerine
Capítulo XL
Décima primeira etapa: de Coimbra à Mealhada
Os 21 quilómetros que vão de Coimbra à Mealhada não são difíceis, caminhamos quase sempre em alcatrão e, mesmo os caminhos, mais raros nesta etapa, não se podem qualificar como inclinados nem pedregosos. Calha bem: doem-me os pés. E a mochila pesa de maneira crescente. Nas duas últimas noites não dormi metade do suficiente; sinto-me cansada porém, entre conversa e descoberta, crescem-me novas energias, avanço sem dificuldade.
Os habitantes com quem metemos conversa, nos cafés, ruas e supermercados, mostram-se amáveis; conhecem o Caminho de Santiago e vêm cada dia passar mochilas. Por outro lado: duas caminhantes parecem-lhes menos suspeitas do que uma sozinha. Se perguntamos o caminho, informam-nos de boa vontade e até, em ocasiões nas quais, distraídas na conversa, tomávamos a direcção errada, nos chamam a atenção.
Atravessamos vinhas, olivais, campos de malmequeres e quintais cobertos de rosas. Também caminhamos à beira da N1, percurso pouco bucólico, nada bonito e até perigoso. Embora, noutras situações, lacónico ou impreciso, aqui o nosso Gérard não omite um pormenor: seguir em frente, tendo à direita o café Monte Belo e à esquerda a churrasqueira Tem-Tem (Ah, os nomes dos cafés e restaurantes! Que poema… Valem só por si o esforço da caminhada.), passar o semáforo, continuar, deixar à direita a estrada para a Pampilhosa e, 30 metros mais adiante, atravessar com prudência a N1. Assentamos que o nosso Gegê, na viagem pelo Caminho Português, terá jantado e dormido bem na cidade de Coimbra: revela aqui as plenas capacidades. Cada vez que devemos atravessar uma linha de comboio ou caminhar à beira da estrada, Gegê recomenda: com cuidado, com prudência.
Rimo-nos.
- Agora atravessas, sim – mas como?
- Prudentemente!
(Apesar destas brincadeiras, sinto-me muito grata a este francês que, através do seu roteiro, me tem ajudado, inúmeras vezes, a encontrar um caminho que, sem ele, eu teria perdido.)
Perto da Mealhada, caminhamos no meio do campo, entre canaviais, oliveiras, vinhas e campos semeados, passa um tractor com dois homens, vão regar o olival, conversamos um pouco; encontraram aqui um peregrino que vinha a pé de Málaga. Pela primeira vez, desde Lisboa, não me sinto uma aberração. Estes homens não fariam o que faço, é evidente, caminhar não é para eles, que têm carro e tractor, admitem porém as minhas razões, mesmo sem as compreenderem.
À entrada da Mealhada deparamos com um inglês que chega de Santiago. Tentou seguir o Caminho Português a partir de Lisboa, perdeu-se à saída de Santarém por falta de sinalização, desistiu: apanhou o comboio para o Porto. A partir do Porto tudo é fácil: caminhos bem sinalizados, paisagens excepcionais e possibilidades de albergue em todas as etapas. Boas novas, portanto…
Dirigimo-nos para os bombeiros voluntários, onde somos muito bem acolhidas. Mostram-nos o ginásio, explicam-nos o duche. A porta do ginásio não fecha; estudamos a possibilidade de a prendermos com uma corda. Como este espaço se encontra sempre aberto, há pássaros a viver no interior, lá para cima, perto do tecto; não nos incomodam.
Sentimo-nos ambas cansadas. Maria queixa-se que em Coimbra, no dormitório da pousada da juventude, um concerto de roncos a impediu de dormir. Tomamos duche, lavamos roupa, que estendemos, como é meu costume, na baliza, vamos às compras, fazemos um festim... Maria ri-se das trinta e duas barritas. (Não lhe mostro os três sacos com rodelas de chouriço.)
Tratamos dos meus pés. Descubro que, para além das bolhas de ontem, apareceram outras quatro. Maria, mais experiente neste tipo de desventuras, conhece todas as estratégias para curar as maleitas do caminhante. Aconselha-me a rebentar as bolhas. Não é fácil. As piores encontram-se por debaixo das unhas e os dedos entretanto incharam. Acabo por conseguir, com o corta-unhas, mais ou menos desinfectado. Depejo Betadine para dentro dos buracos. Arde. Dói. Enrolo compeedes por cima; estes pensos isolam, protegem e permitem que a pele se regenere. Aprendo o ritual quotidiano: de manhã, untar os pés com vaselina, à noite, tratar com Betadine e, se necessário, acrescentar compeedes. Maria, que não precisa deles, dá-me três pensos; e torno-me, a partir de hoje, boa cliente das farmácias que, pelo caminho, vou encontrando.
Continuamos na conversa. Começo por declarar a Maria que, em língua espanhola, só li La Regenta de Leopoldo Alas, mais conhecido por Clarín: uma obra comparável a Os Maias, Guerra e Paz ou Madame Bovary. Depois, a pouco e pouco, lembro-me que também li La Zapatera Prodigiosa de Lorca. E La Família de Pascual Duarte de Camilo José Cela. E Pedro Páramo de Juan Rulfo. E La oscura historia de mi prima Montsé de Juan Marsé. E, de Alfons Cervera, Maquis e El color del crepúsculo... Tenho uma cultura mais ibérica (ou latino-americana, se incluirmos Juan Rulfo, que é mexicano) do que imaginava. Falamos da convivência ambígua dos portugueses com os espanhóis, uns vizinhos demasiado próximos e poderosos para inspirarem confiança – com os quais temos, no entanto, tanto em comum.
Concordamos que, graças à UE, as relações entre portugueses e espanhóis se tornarão, daqui em diante, mais serenas.
Por volta das sete e meia, Maria começa e ler e eu a escrever. Aparece uma rapariga com ar embaraçado...
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