Manuela Degerine
Capítulo LV
Décima quinta etapa: de S. João da Madeira ao Porto (conclusão)
Prossigo o caminho. Reparo numa vedação de lajes cortadas e colocadas em posição vertical; nunca vi um muro assim. Também tenho, durante o dia, em diferentes locais, visto espigueiros. Chego a uma mata de eucaliptos – quando oiço Maria atrás de mim. Miro-a, surpreendida. Por que não apanhou o autocarro? Sente-se melhor? Não chego a fazer perguntas: ela ultrapassa-me, com semblante altivo e, antes de eu abrir a boca, desaparece no cimo da rua.
Chego a Perosinho. Converso com uma senhora, que vai, como eu, na direcção do cemitério, ela muito admirada, descobrindo que as setas amarelas indicam o caminho de Santiago, várias vezes se interrogara, imaginava algum jogo ou concurso, inquiro a que distância fica Rechousa, depende, pela serra é mais curto, mas assim sozinha, não convém arriscar-se... Passam quatro ciclistas.
- Buen camino!
Também se dirigem para Santiago.
Despeço-me da senhora no cemitério. Como a rua é muito inclinada, ultrapasso os ciclistas. São brasileiros de uma variedade pouco comum em Portugal: parecem imagens de um catálogo. As luvas, as calças, os óculos, os capacetes... Os ténis com uma capa protectora... Tudo novo, última inovação e com as marcas à vista. Dois ultrapassam-me logo, converso com os outros. E noto que a própria rapariga... Onde vi este nariz, estes lábios, estas sobrancelhas?... Talvez em imagens de Hollywood. (Outro mundo: mais estereotipado do que o meu.)
Passo por outro espigueiro, chego a uma estrada romana, a qual atravessa o que a senhora designou como serra e não passa de uma mata. Este é que é o Pinhal da Azambuja? A interrogação de Almeida Garrett gravita na minha cabeça. (Chama-se ao fenómeno intertexto, não é?...) Uma mata pequena, mas muito bonita, com aquelas pedras a ondularem pela encosta acima. No cume há vivendas, sai uma senhora, a qual inquire para onde vou. Quando lhe explico, exclama:
- Admiro-vos muito!
E entra no carro.
Atravesso Rechousa na direcção da N1. Volto a cruzar-me com peregrinos; um dos grupos reza em coro.
Quando passam camiões, a poucos centímetros de mim, corro o risco de voar... A caminhada torna-se portanto perigosa, sem passeio para peões, apesar de haver, não raro, construções à beira dela – e muita gente a caminhar. Por onde andam os autarcas deste país? Os peões não estão aqui apenas de passagem, a caminho de Fátima ou Santiago, são também habitantes e precisam de se deslocar, meio quilómetro para um lado, meio quilómetro para o outro – poderiam ir a pé, gostariam de ir a pé, se fosse possível. Não é por acaso que Portugal se tornou o país da desconfiança e da fisioterapia: as autarquias dissuadem os cidadãos de dispensar o carro, quer através de uma insegurança descontrolada, quer através da ausência de infra-estruturas tão básicas como passeios ou passadeiras. E, claro, quanto menos gente caminhar, maior será o sentimento de insegurança, menos gente se atreverá a sair de casa, menor será a solidariedade entre vizinhos: assim se vai destruindo a qualidade de vida. Almeida Garrett propunha que os políticos fossem obrigados, ao menos uma vez cada ano, a viajar por este seu reino de Portugal. Eu completo: a viajar... a pé!
Deixou há muito de haver sinalização mas tenho prosseguido, sem duvidar nem me enganar, graças ao roteiro francês. Volto por fim a reencontrar as setas amarelas após a travessia de uma ponte por cima da auto-estrada.
Chego aos arredores do Porto. Em S. João de Ver não comprei a sandes e, ao longo do dia, por diversas razões, fui adiando a ocasião: havia gente à espera, o pão não me agradou, o queijo não me tentou. Comi a fruta. Comi duas barritas. Comi um resto de nozes. Comi o último quadrado de chocolate preto. Entro agora num hipermercado, compro pão, queijo, fruta, leite e outra tablete de chocolate. Almoço – não obstante a hora – sentada num banco. A chuva parou; arrumo o equipamento. Arrumo o que resta da refeição. E prossigo. (Devo ter abusado nas compras: sinto a mochila mais pesada.)
Agora passo por debaixo da auto-estrada. Caminho. Continuo a caminhar. Sigo por ruas que nunca mais acabam, como numa passadeira de ginásio, como num pesadelo repetitivo: caminho sem avançar. Doem-me as costas, doem-me os ombros, cada vez mais. Doem-me os pés, doem-me as pernas. Mais adiante: dói-me tudo. Entrei num tempo que não se mede no relógio, num espaço que se dilata à medida que avanço...
Os prédios seguem-se, uns após outros, em tons pardos de subúrbio, azulejos e marquises sem aparência singular, como na Amadora, como em todas as periferias de Portugal, copia-se esta falta de estilo há sessenta anos, copia-se esta fealdade por todo o país. Sucedem-se os cafés, as padarias, as frutarias, as lojas de roupa, as lojas chinesas...
Vejo agora muita gente pelas ruas. As pessoas conversam numa atitude descuidada; em Queluz circulam no meio da rua, para haver escapatória possível, quando algum indivíduo se acercar. Não, os arredores do Porto não me parecem assustadores – parecem-me infinitos.
Chego por fim a Vila Nova de Gaia. Paro no miradouro para admirar a cidade. O Porto aqui tão perto... Serei capaz de lá chegar?
Atravesso a célebre ponte. Avisto ao fundo os azuis azulejos da igreja, passo junto da estação de S. Bento. Subo, atravesso, subo... Os bombeiros encontram-se ao lado da câmara. O momento do duche aproxima-se.
quarta-feira, 21 de julho de 2010
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As portas das casas dão directamente para a rua.Não sei se foram as casas que chegaram primeiro, mas é uma ratoeira mortal. No norte do país é vulgar.Gente a mais, terreno a menos? A estrada foi ali metida a martelo?
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