domingo, 25 de julho de 2010

Novas Viagens na Minha Terra

Manuela Degerine




Capítulo LIX

Décima sexta etapa: do Porto a Vilarinho

O Rafeiro dos Olhos Amarelos

Como Almeida Garrett, no capítulo IV de Viagens na Minha Terra, aviso o leitor de que será preferível passar à leitura do capítulo LX. Receio impacientá-lo com um episódio que na verdade só narro para eu própria chegar – se possível – a compreender...

O animal está todo molhado e não parece agressivo.

- Olá...

Começa abanar a cauda. Tem olhos amarelos e orelhas expressivas. Faço-lhe uma festa, digo-lhe adeus. As orelhas inclinam-se num movimento que me parece pungente.

- Estás todo molhado… Por onde andam os teus donos?

Tenho inspirado, desde que me perfumo com chouriço, sucessivas paixões caninas, que me deixaram indiferente. Faço outra festa ao Rafeiro dos Olhos Amarelos, explico que vou para Vilarinho, a pé, claro, como ele vê, convém não me demorar, o abrigo tem quatro camas, num instante fica cheio, resta-me palmilhar vários quilómetros. Trocamos outro olhar de mútua simpatia. Volto a despedir-me: última carícia, entre as orelhas.

Ele solta um ganido.

Lembro-me então das rodelas para os cães pequenos – que são os menos perigosos. Poiso o bordão, abro a bolsa, rasgo o plástico. O Rafeiro engole-as, em dois segundos, com tal apetite, sacrifico um pacote dos cães grandes e, logo a seguir, o restante.

Um minuto mais tarde, viro por fim costas. Fica ele a ganir. E eu sinto-me também triste. Abrando até o ritmo da caminhada: se decidir voltar atrás, percorro menor distância. Vou porém desdobrando as minhas razões... Não, não me convém ter cão, ando sempre a mudar de casa, os cães complicam as viagens aéreas, no caminho de Santiago, nem os albergues, nem os bombeiros, nem as residenciais, ninguém aceita animais, depois em casa, ainda pior, os cães largam pêlo, babam os sofás, mancham o soalho, há que os levar à rua, que apanhar cocós e, para já, este tem donos que, se calhar, não o querem dar nem vender, pode até ter pulgas e carraças, devo estar é doente... Tão vulnerável? Incapaz de resistir a um olhar canino? Não é habitual.

Envergonho-me, perante mim mesma, desta pieguice. Procuro atenuantes... Estarei cansada? Sofro de solidão?

Tenho comido e dormido bem. E vou tão ocupada com o que vejo – nunca me noto sozinha. Saboreio esta liberdade e esta disponibilidade.

Narro afinal a peripécia para ficar patente como, por razões de preguiça e conveniência, se pode abafar uma paixão à primeira vista.

1 comentário:

  1. eheheh é o que eu digo uma narrativa de emoções, um caminho de sentimentos.

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