Carlos Loures
Talvez que o mais evidente sinal de abertura dado pela chamada «primavera marcelista» de 1969 tenha sido o programa Zip-Zip transmitido pela RTP. A censura de Salazar não o teria autorizado e Marcelo que se converteu também em estrela de televisão com as suas «Conversas em família», quis dar um sinal de que os tempos tinham mudado. Como não me canso de repetir, mudou alguma coisa para que tudo ficasse na mesma. O Zip foi uma das pequenas mudanças – a Guerra Colonial, as prisões, a tortura, a repressão, a miséria, continuaram. Isto a par com uma crise económica que nada fica a dever à actual. Como Raul Solnado, Carlos Cruz e Fialho Gouveia disseram depois, a ideia foi mesmo essa – ajudar Caetano a democratizar, comprometê-lo com a democratização que prometera. Chegaram mesmo a convidá-lo para ir ao programa, convite que Marcelo Caetano declinou, embora agradecendo.
Naquelas 32 semanas que o Zip durou, passaram pelo palco do Teatro Villaret, onde o programa era gravado, escritores, actores, cantores, artistas plásticos, personalidades que o grande público conhecia mal ou mesmo desconhecia – um taxista referindo-se a Almada Negreiros, que foi o convidado do primeiro programa, dizia «Não sabia que havia pessoas tão importantes em Portugal.» Essa revelação de uma face do seu país que a maioria dos portugueses ignorava, foi uma das chaves do sucesso. Ás segundas-feiras à noite, quando o programa era transmitido, pode dizer-se que o país parava - «Que surpresa haverá hoje?» – perguntava-se. Como disse Adelino Gomes em «Zip-Zip: Os sete meses que marcaram a televisão em Portugal» (Público, de 25 de Setembro de 2009): «As ruas ficavam vazias. As casas de espectáculos sem público. Pela primeira vez, um programa de televisão marcava a agenda das conversas dos portugueses. Aconteceu durante o segundo semestre de 1969. Em plena “primavera marcelista”». Acrescente-se que consta que um Conselho de ministros convocado por Marcelo para uma segunda-feira, teve de ser adiado porque a maioria dos ministros não abdicava de ver o Zip:
Um dia, vindo para casa, com o rádio do carro sintonizado na TSF, pois o presidente Sampaio ia fazer uma comunicação ao País, o programa que estava a ser transmitido, foi interrompido e o locutor anunciou que o Marco tinha dado um pontapé na Sónia. E aconselhava a ligarmos para a TVI. Intrigado, pois não fazia ideia de quem seriam tais pessoas, logo que cheguei a casa, foi a primeira coisa que fiz e passados momentos lá passaram a gravação do pontapé. Nunca tinha visto o «Big Brother» e, atónito, assisti durante uns minutos ao degradante espectáculo que já aqui mostrei, numa crónica anterior.
Este tipo de cenas foi ocorrendo quase diariamente, desde que entre 3 de Setembro e 31 de Dezembro de 2000 a TVI lançou o primeiro «Big Brother. Tal como mais de trinta anos antes perante o Zip, as pessoas interrogavam-se - «O que acontecerá hoje?» Judite de Sousa referiu-se num depoimento ao facto de a tabloidização da televisão corresponder a um gosto do público que «quer sobretudo mais emoção», preferindo conteúdos «que façam apelo à emoção», insistiu. Disse também que «a vida vai estar cada vez mais presente na televisão». Talvez se referisse ao facto de pessoas comuns, como o Zé Maria, a Susana, a Célia ou o Marco, se transformarem personalidades públicas. Mas será que a amostragem reflectia o conceito de «pessoas comuns» - os portugueses são de facto assim? Será que a vida no nosso país tem muito a ver com o que se passava na «casa»?
Porque comparo estes dois programas tão diferentes? Parece-me óbvio – porque ambos mudaram a televisão. Tal como acontecera com o Zip, depois do «Big Brother» a televisão mudou também, impondo em três dos canais generalistas a moda dos reality shows. ZIP-ZIP e «Big Brother» deram lugar a debates sociológicos, a estudos académicos. De notar que, de série para série, o concurso foi perdendo popularidade até que, à 4ª, a TVI suspendeu o programa. A única semelhança entre os dois programas é no nível de impacto produzido. Olhando estes exemplos e não levando em conta questões acessórias, circunstanciais, epocais, como o facto de a emissão ser a cores ou a preto e branco, as roupas, a linguagem, o que terá mudado na sociedade portuguesa para que em 31 anos o gosto do público tenha mudado de tal forma. Em 1969 o índice de analfabetismo era elevado. Hoje será residual. Nessa altura tínhamos cerca de 30 mil estudantes nas universidades – hoje, esse número mais do que decuplicou. O poder de compra subiu e o acesso aos bens culturais é mais fácil. E no entanto um programa como o Zip-Zip fazia parar o país, tal como trinta e um anos depois aconteceu com o «Big-Brother». É evidente que o poder da televisão era grande e que actualmente também o é. As circunstâncias históricas são diferentes, mas, apesar de tudo, são melhores, mais favoráveis, menos constrangedoras.
Embora estatisticamente o índice de literacia seja muito mais elevado, verifica-se que o gosto dos telespectadores se deteriorou. Não acreditando que as pessoas sejam hoje piores do que eram há 40 anos, interrogamo-nos - o que aconteceu? Já ouvi diversas explicações. Dizem-me que as pessoas pareciam mais educadas, porque eram obrigadas a ser mais contidas e que adoraram o Zip porque era diferente da programação-tipo dos dois canais então existentes - «uma pedrada no charco», como o classificou Mário Castrim, o mais conhecido dos críticos de televisão da altura, . Talvez todo isto seja verdade. E talvez mesmo que aquilo que eu mostro com a intenção de acentuar o abismo cultural entre duas maneiras de fazer televisão, se vire contra o meu argumento – o preto e branco face à cor, o ar formal dos apresentadores, a linguagem correcta em comparação com o paleio vulgar, ordinário, podem levar quem vê, a optar pela segunda amostra, achando-a mais «realista».
Para que não se pense que só em Portugal o programa tem um nível rasteiro, podem ter a certeza de que esse primarismo é semelhante em todos os países, em Espanha, em Itália, na Rússia... Vejam só este edificante exemplo da versão brasileira:
«Big-Brother» e programas do género, é altura de reflectir: são pedradas no charco ou o regresso ao charco?
Que televisão queremos?
terça-feira, 6 de julho de 2010
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