“Mehr Licht !” ―as últimas palavras de Goethe,no sentido de mais instrução, ciência, verdade !
Segue uma tradução ligeiramente abreviada de um ensaio de Richard David Precht* publicado em DER SPIEGEL 26/2010 de 28.06.2010, “Die entfremdete Republik”. O ensaio, quanto às linhas mestras e estratégicas, em minha opinião não só reflecte o estado da democracia na Alemanha mas também o da União Europeia e de todos os seus estados membros, incluindo naturalmente Portugal. Artigo original em alemão em:
http://www.spiegel.de/spiegel/0,1518,703254,00.html
*Nascido em 1964, o filósofo e escritor alemão Richard David Precht escreve para vários jornais, entre eles o semanário Die Zeit. É conhecido, sobretudo, pelos seus livros de divulgação da Filosofia, como “Quem sou eu e, se sim, quanto?”, que vendeu 800 mil exemplares e foi traduzido para 23 idiomas. Mais sobre o autor:
http://www.presseurop.eu/pt/content/author/99971-richard-david-precht
Ensaio: A República alheada
Na eleição do Presidente Federal trata-se de algo mais do que apenas um cargo ou uma pessoa.
Por Richard David Precht
A forma como os pais da constituição quiseram eleger o Presidente Federal, quanto aos pormenores deixaram-na em aberto. Apesar das propostas que faziam as fracções, em princípio cada membro do grémio eleitoral - Convenção Federal – podia escrever num papel quem considerava o melhor – se nomeado ou não.
Segundo a ideia, as democracias são formações vivas, elas transpõem a vontade da maioria de um povo. São atenciosas e vivem do interesse de uma população pelo bem comum. São – formulado mais pateticamente – a correspondência política de uma ética sem preconceitos desde os dias de Aristóteles: a oportunidade para uma vida realizada para tantas pessoas quanto possível.
Esta promessa encontra-se representada no nosso país? (…) O testemunho que muitas pessoas passam à nossa democracia, não é expressão de uma baixa de disposição. Porque sofreria a população colectivamente de vacilações hormonais só porque a contemplação contínua de Guido Westerwelle ou de Angela Merkel a deprime? Pelo contrário, trata-se do atestado de um crescente alheamento.
A tentativa cada vez mais obstinada em preservar uma política de ontem (...)
Hoje, fazem-se às pessoas na Alemanha imensos inquéritos sobre tudo e elas podem escolher muitas coisas: começando pela tarifa premium dos telemóveis e indo até às tarifas dos caminhos de ferro – como cliente, cada alemão vive na ilusão de participação ou co-determinação. Na internet pode avaliar tanto a máquina fotográfica adquirida como a participação na guerra do Afeganistão. E no chat pode irritar-se tanto com uma amiga como com a Angela Merkel. Todavia, a sensação de sucesso que sente na votação para o Song Contest da Eurovisão, é-lhe vedada na eleição do Presidente Federal. Podemos eleger a Lena mas não o Gauck ou o Wulff.
O alheamento entre políticos e cidadãos é mais do que uma questão de co-determinação negada. É, também, a tentativa cada vez mais obstinada em preservar uma política de ontem, na forma e no conteúdo. Encontra a sua expressão mais forte na ideologia do crescimento que nos quer fazer crer que devemos continuar a destruir o meio-ambiente e a consumir recursos para produzir ainda mais bens de consumo. Na realidade, o crescimento económico há muito deixou de fomentar a prosperidade e passou a arruiná-la. Cada nova auto-estrada aumenta o nível sonoro, cada novo centro comercial expropria a classe média e o prémio de abatimento de automóveis é pago pelo contribuinte e pelo meio-ambiente.
Tal como um dinossáurio o estado cambaleia em direcção ao seu fim evolucionário.
Como é que é explicável tal irresponsabilidade dos políticos? Porque é que não corrigem o rumo quando a sociedade dopada com hormonas de crescimento se movimenta a todo o vapor para o “Absurdistão”? Porque não é da competência de ninguém. Determinar e alterar o rumo geral não é da competência de ministros. Os problemas e as necessidades dos pelouros seguem procedimentos pré-estipulados. De facto, quando todos correm na direcção errada, aquele que averte irrita, tal como um condutor que circula em contramão.
Tal como um dinossáurio o estado cambaleia em direcção ao seu fim evolucionário. Pressente o iminente impacto de um meteorito, mas não tem nada para contrapor-lhe: nada à explosão das dívidas, a qual enfrenta com medidas cosméticas, nada ao fosso cada vez maior entre pobres e ricos, nada à desertificação dos municípios, nada à poluição psíquica do meio-ambiente mediante a publicidade, não falando dos perigos da mudança do clima. Aceita a era do cretácio ecológico, monetário e social como um facto fatal.
Numa situação destas, à política também falta a vontada de mudar seja o que for. O pessoal de liderança política pouco se distingue dos banqueiros da econonomia de falências que ainda aproveitaram o que puderam agarrar: alguns últimos privilégios, um pouco de sensações de poder, alguns direitos de pensão.
O problema sociológico da elite de liderança política é a falta de auto-observação. Os sistemas tornam-se frágeis quando deixam de conseguir ver-se a si próprios com outros olhos. A auto-cegueira não apenas impede a inovação mas também induz a não compreender a gravidade da situação: tal como 1933 em Weimar e 1989 em Berlim Leste.
Acresce que também os alegados guardiões da nossa democracia, os medias de massa, mal fazem justiça à sua função. Com efeito, os noticiários e os programas de informação política há muito tratam a política como um tema de yellow press: quem com quem, porque e porque não – um programa de diversão de fraco interesse com poucos protagonistas interessantes.
Até quando os cidadãos toleram isto?
Todavia, enquanto o público mostra cada vez menos interesse nestes folhetins diários, os protagonistas políticos das séries tomam o seu papel mediático pela realidade e a sua imagem por eles próprios. Os políticos, em primeira linha, interessam-se por outros políticos – por concorrentes e aliados, membros dos partidos e outros inimigos, para alianças úteis e comunidades de proporção.
Um político daqueles não conhece o povo. E não precisa conhecê-lo, quando muito o seu condensado nos inquéritos dos investigadores da opinião pública. No dia-a-dia não nota a população porque nada e ninguém o obriga a tal, excepto talvez nas campanhas eleitorais. O teatro da democracia ao fim e ao cabo também funcionaria sem público. O que falta é a interdependência, o refresco, o intercâmbio, a ligação à terra, a sustentabilidade e o sentido social para a realidade.
Quando um político se dirije efectivamente “às pessoas” que não conhece, para maior segurança escolhe as formulações mais estúpidas. No entanto, para um político de topo que p.ex. quer mandar os desempregados limpar a neve nos passeios, só se recomenda uma coisa: fazer uma cura da realidade. Por exemplo: um ano de trabalho social numa cidade empobrecida do leste alemão.
Porém, porque é que “o povo” ou “as pessoas” continuam a aceitar tudo isto? Porque ninguém é “o povo” ou “as pessoas”, mas em caso de dúvida apenas um tele-espectador que no fim de cada talk show decide que definitivamente não voltará a gramar tal coisa. E também já não participa em eleições, por não se sentir representado. Nenhum partido é tão forte na Alemanha como o dos abstencionistas. É ele o novo partido do povo. Os políticos podem viver com esta situação – a nossa democracia não pode.
Quando o governo e os governantes já não representam a vontade do povo, na questão do clima, do Afeghanistão, no desejo por mais democracia directa, quando criam uma Europa que por um lado consegue normalizar os pepinos mas por outro não consegue realizar forças armadas comuns, nem assistência a países subdesenvolvidos ou uma política de energia e clima, pergunta-se de onde eles recebem a sua legitimação. Para que nível a taxa de abstenção deve descair até os regentes deixarem de sentir-se como os representantes do povo – 40 por cento, 30 ou 20?
A nossa democracia já não é reflectida
A vigilância que distinguiu a política alemã federal até 1990, foi-se. A nossa democracia é coisa tão natural que deixou de ser reflectida. Nos monopólios de fé e de opinião – assim escreveu o filósofo britânico John Stuart Mill em 1859 –, a fé ou a opinião tornava-se rapidamente uma frase não mais vivida: “tanto os professores como os discípulos adormecem nos seus postos, assim que nenhum inimigo esteja à vista.”
Porém, o “inimgo” já está cá há muito. Não agita bandeiras, nem grita slogans e não ameaça com exércitos. Chega com os pézinhos de lã da mudança do clima, a desagregação deslizante da Europa, o solapamento da moral através das marés da indústria financeira internacional, do marasmo dos sistemas de segurança social. Segundo Mill, uma democracia precisa no seu nível superior de liderança, peritos de provas dadas e incorruptíveis. Só se governassem os melhores dos melhores, seria admissível que não fosse o próprio povo a agitar o ceptro do poder. Porém, os peritos na realidade da democracia alemã encontram-se bem camuflados e entulhados detrás de montes de peritagens não lidas, pregam em livros que nenhum político lê, ou afundam-se no quotidiano das nossas universidades.
Em contrapartida, os nossos políticos parecem-se com caminheiros errantes. Os mapas que seguram nas mãos já não condizem com a paisagem. O que lhes marca o rumo são veredas trilhadas e não o sentido de orientação. Como sinal itinerário servem-lhes os lobistas de todos os quadrantes, que entram e saiem na Assembleia da República.
E todos juntos e uns contra outros colocam os seus holofotes e sujam a luz do conhecimento moral. Qual metrópoles à noite, criam o seu próprio cone de luz que torna impossível ver o céu estrelado.
Será que até temos os políticos que merecemos?
Os lobistas conseguem a política que eles querem, quer através de donativos aos partidos, amabilidade assídua ou ofertas de empregos para ocupação secundária e para depois. Os Sres. Clement, Bangemann, Althaus, Fischer, Schröder e em breve presumivelmente Roland Koch – estes já não são elder statesmen mas elder salesmen.
Quando se encontram um conhecimento e um interesse contrário, é o interesse que ganha. Mas até quando os cidadãos aceitarão isto?
Ou será que até temos os políticos que merecemos? Quem se indigna sobre a mudança climática da mesma maneira como com o aumento do preço da gasolina, não precisa de sentir-se melhor que o pessoal que o representa. E a anastesia local do cérebro, isto é, a satisfação através da satisfação da indústria recreativa, deixa vestígios: não satisfação mas descanso.
A revolta das pessoas na internet e noutros lugares em favor do “seu” candidato a Presidente da República Joachim Gauck, fala uma língua diferente. Poderá constituir um sinal, mesmo que e precisamente então, se Gauck perdesse. Um símbolo que é maior que o homem. Um fanal para a reconstrução do nosso estado, alimentado pela fantasia e a inteligência de multidão dos seus cidadãos. Mais responsabilidade para todos nas cidades, nas empresas e mais referendos – é aí onde se encontra a frente.
“Por toda a parte a autoridade e a tradição devem admitir a questão da sua justificação … Não menos mas mais democracia – é esse o postulado, o grande objectivo ao qual todos e sobretudo a juventude nos temos que dedicar”. Quem disse isto era um grande Presidente da República: Gustav Heinemann. As suas palavras ainda continuam válidas e sempre de novo.
terça-feira, 6 de julho de 2010
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