sábado, 3 de julho de 2010

Os semitas deserdados e as «pátrias ancestrais»


Carlos Loures

Já aqui falei algumas vezes do Estado de Israel e daquilo que penso sobre a legitimidade das pretensões judaicas sobre o território da Palestina. Mas, já agora, volto a dizer – acho que foi uma ignomínia. Com base no que diz um livro e por mais que digam, o Antigo Testamento (ou a Torah), não passa de um livro, os palestinianos foram desapossados das terras, enxotados, como se de um rebanho se tratasse, para campos de refugiados, obrigados a viver como pedintes em terra alheia.

Uma vergonha, uma prepotência da diplomacia britânica que, até ao primeiro quarto do século XX, entendia poder intervir em qualquer parte do mundo, sob qualquer pretexto ou mesmo sem pretexto. Apenas porque sim, porque lhe convinha. Papel hoje competentemente desempenhado pelos Estados Unidos. Naturalmente que os judeus construíram o seu estado, hoje habitado por quase oito milhões de seres humanos e seria outra ignomínia «riscá-lo do mapa», como pretendem os extremistas da causa islâmica. Um erro não se emenda com outro erro. E seria o caso.


Mas, parece ser pecha dos semitas este pendor para o exagero fanático. Porque, etnicamente, os árabes também são semitas e falar-se de anti-semitismo, na acepção de anti-judaísmo ou anti-sionismo, é um erro triplo, humanístico, biológico e linguístico. Fundamentalistas islâmicos reclamam o Al-Andalus como sua pátria ancestral - falamos de uma extensa região da Península Ibérica que cobre o Algarve, a Extremadura, a Andaluzia…


Como podemos ver pelos mapas acima, depende de que época da História estes senhores estão a falar, porque a evolução da Reconquista Cristã foi reduzindo o espaço do Al-Andalus até o transformar no Reino de Granada que, em 1492, os Reis Católicos invadiram e dissolveram. A ideia desta pátria islâmica tem vindo a ganhar força. Embora ainda faça menos sentido, na minha opinião, do que a ideia bizarra do «lar judaico» na Palestina.

Os árabes vieram da Península Arábica – essa é que é a sua pátria ancestral. Povo essencialmente nómada, os territórios que se conquistaram pelas armas, continuam a pertencer aos vencidos. Quando em 27 de Abril de 711 (cumprem-se 1300 anos no próximo ano), Táriq Iba Ziyad, lugar-tenente do governador de Tânger, à frente de nove mil homens desembarcou em Gibraltar não demoraram muito tempo para levar os desorganizados visigodos de vencida.

Em poucos anos atingiram as regiões mais setentrionais, encontrando a resistência de vascões e dos reinos astures. Penetraram em território franco, sendo derrotados em 732 na batalha de Poitiers, ficando detidos do lado ocidental dos Pirenéus. Porém, essa vitória militar não lhes dá o direito de reivindicar o Al Andalus. Os territórios são de quem os habita agora – ou os islâmicos têm um critério para a Palestina e outro para o Al-Andalus?

Como disse, os fundamentalistas islâmicos reclamam como sua pátria ancestral a distante civilização do Al Andalus. Têm-no feito muitas vezes. Um exemplo: quando há três anos, em 11 de Abril de 2007, três islamistas se suicidaram guindo três carros bomba em Argel e matando 30 pessoas, o dirigente salafista Abu Musad Abdel Wadoud disse: “Que entreis com os vossos pés lavados no nosso Al-Andalus despojado, depressa se Alá o quiser”. E comentou logo a seguir: “Que os nossos pés limpos pisem o nosso Al-Andalus raptado e a Quds Jerusalém) violada”.

Voltar ao Al-Andalus, recuperar o seu antigo esplendor. Do que estão falando, de facto, os fundamentalistas actuais, que imagens associam àquela civilização que, durante quase oito séculos, prosperou em grande parte da Península Ibérica? De notar que aquela sociedade seria condenada pelos actuais islamistas, pois era demasiado tolerante e permissiva.

Estudiosos do Islão, perante estas declarações, deram a opinião de que apenas se trata de reivindicar um elemento do imaginário muçulmano coincidente com o momento de hegemonia e pujança da religião. O Al-Andalus foi conquistado apenas oito décadas depois da morte do profeta e o facto de no extremo mais ocidental do mundo muçulmano se tenha criado uma sociedade plenamente integrada nesse mundo, sempre foi visto como sinal da força política religiosa e cultural que o Islão primitivo albergava. No século X, a língua árabe era maioritária entre a população. O latim deixou praticamente de ser usado.

Depois veio a decadência. Os cristãos foram ganhando terreno e o Al-Andalus acabou por não ser mais do que uma nebulosa metáfora que cada qual interpretava a seu gosto. A Al Qaeda olha aquele esplendor para compensar o declive humilhante no qual desde então o Islão se precipitou, declive a que a organização procura pôr um ponto final regressando a uma ideologia de combate e de guerra santa que não está disposta a admitir compromissos.

No seu livro «Os Deserdados», Henry Kamen fala daquela época, salientando como, no século X o território do Al- Andalus – uma quarta parte da Península – era um país totalmente controlado por muçulmanos, sendo o mais poderoso e refinado da Europa ocidental. Era uma civilização marcadamente urbana, onde se destacavam grandes cidades como Córdova ou Granada, com uma avançada organização política e social. Nada tinha a ver com os reinos cristãos do norte, cujas economias assentavam na pecuária e na agricultura. Era uma civilização muito evoluída para a época, mas não podemos reduzir a realidade de oito séculos a uma única imagem. Nem tudo correu bem. Seja como for, durante séculos, umas vezes melhor outras pior, muçulmanos, cristãos e judeus, conviveram pacificamente no Al-Andalus.

O que terá contribuído para a decadência muçulmana? Talvez mais do que em causas religiosas, a explicação se encontre na maneira de exercer o poder, na diferente relação entre governantes e súbditos. Enquanto a sociedade cristã se regia pelo direito civil, a muçulmana era orientada pelo direito religioso. Nos reinos cristãos entre o poder real e o povo existiam espaços que permitiram que se consolidassem as classes emergentes, mercadores, artífices, burgueses.

Entre os muçulmanos, os governantes consideravam-se descendentes do Profeta e no vértice do poder, os ulemas lidavam com os mandatários, o que não permitia fissuras. Era uma estrutura acabada, enquanto que a estrutura social cristã permitia uma permanente autocorrecção.

Por outro lado, entre os muçulmanos, a poligamia produzia numerosos descendentes com aspirações a governar. O mundo muçulmano era governado através da chária, não havendo qualquer diferença entre o poder civil e o religioso. As tensões do mundo cristão com classes a lutar pelos seus interesses e a contestar o poder real, não existiram no mundo muçulmano. O que evitou revoltas mas criou uma certa estagnação e incapacidade de renovação. Não existiu nunca uma classe burguesa que exercesse a sua influência, impondo o seu pragmatismo laico, sobrepondo o espírito de iniciativa e de lucro ao da vontade divina e ao do monarca. Esta terá sido uma das causas da decadência das sociedades islâmicas.


Esta visão, de um Islão desenvolvido, civilizado, tolerante, que é a que nos transmite a leitura de livros como “Os Deserdados, de Henry Kamen ou “As Sandálias do Mestre”, de Adalberto Alves, é frontalmente contrariada pela outra imagem que os fanáticos nos dão, ameaçando, julgando segundo uma religião a que só eles estão submetidos, pessoas de outras confissões ou ateus. Compreende-se que, após o esplendor de há mil anos atrás e a pujança do império Otomano que se lhe seguiu, veio um período de inauditas humilhações, infligidas pelas grandes potências – a Grã Bretanha primeiro e depois os Estados Unidos, e os países ocidentais em geral, que deram força aos judeus e os instalaram numa região de maioria muçulmana.

O terrorismo é a bomba atómica dos pobres e os islamistas usam-no como expressão do seu ódio a um mundo que os escorraçou e humilhou. Mas, se um dia tiverem uma verdadeira bomba nuclear, talvez não hesitem em a lançar sobre Israel. E por isso compreende-se a posição israelita (o que não quer dizer que com ela se concorde). À mínima distracção, ao menor abrandamento da vigilância, poderão ser aniquilados.

A solução seria, em vez de proporcionar um arsenal nuclear a uma das partes, quem tem força – Estados Unidos/Nações Unidas - usá-la para impor a convivência pacífica na Palestina entre muçulmanos, judeus e cristãos. Apreendendo por todo o armamento ofensivo na região e contendo os países árabes vizinhos.

Seguindo o exemplo do nosso Al-Andalus.

1 comentário:

  1. Muito bom, na verdade não há saída se não a paz e a convivência no mesmo território.Muito longe de quem não tem argumentos nenhuns para além do ódio.

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