domingo, 25 de julho de 2010

Reflexões sobre Bolonha - 3

Júlio Marques Mota*

(Continuação)

ANEXO (1)

Nota Prévia (de um texto de Economia Internacional)

O presente trabalho é a reformulação e a simplificação de um texto do mesmo nome que foi durante anos utilizado nesta disciplina. A redução da carga horária, ao abrigo das normas e dos objectivos decorrentes do chamado processo de Bolonha levou a que neste texto se procedesse a certos e, por vezes, prolongados “cortes”, de modo a adaptá-lo aos tempos de leccionação estabelecidos e ao momento na licenciatura em que genericamente estes conteúdos são estudados. Não é a mesma coisa ensinar dada matéria a alunos do quarto ano ou do terceiro ano, e também não pode ser indiferente se é ensinada no primeiro semestre ou no segundo.

Trata-se pois de fazer as respectivas adequações que no fundo se traduzem numa simples expressão: trata-se de fazer as simplificações adequadas, de modo a que o nível de ensino se enquadre no primeiro ciclo do ensino universitário pós processo de Bolonha.

Tal como antes, mantemos a certeza de que é fundamentalmente a “trabalhar” sobre as matérias que se ensinam, reconstruindo-as de acordo com as matrizes dos alunos a que se destinam, e sem que isso signifique a redução na capacidade de conceptualização e abstracção, que se pode aprender a ensinar, ou seja, que se pode igualmente aprender a trabalhar sobre um dos mais delicados e abstractos objectos de trabalho que se conhecem: a inteligência dos outros. Se a tarefa já não era nada fácil, continuar a fazê-lo com a mesma qualidade nos tempos que se adivinham pode ser mesmo muito difícil. Outros tempos, outros tempos de resistência, de que também não se pode abdicar, por muito fortes que sejam as forças em sentido contrário. Haverá com certeza tensões naqueles para quem ensinar é ainda um trabalho difícil de construção e reconstrução do saber, para se poder assim chegar ao ensino sobre o concreto.

Na Declaração de Bolonha, reconhece-se que “[se assiste] a uma consciencialização crescente em grandes áreas do mundo político e académico assim como na opinião pública da necessidade de criar uma Europa mais completa e alargada, nomeadamente considerando e dando solidez à sua dimensão intelectual, cultural, social, científica e tecnológica.”[1] Não conseguimos é compreender como é que reduzindo cargas horárias, reduzindo o número de anos lectivos, aligeirando os currículos com simplificação dos níveis de abstracção na própria leccionação, se pode conseguir o que afinal se diz pretender.

Por tudo isto, concordamos plenamente com Luís Reis Torgal[2] quando afirma que o processo de Bolonha “era apresentado pelos governos e pelos seus ideólogos em operação de marketing, feita de aparências e representações, apontando para uma imagem ‘mais inteligente de se ensinar e aprender’ (como se ‘saber ensinar’ e ‘saber aprender’ fosse uma descoberta do século XXI!) e escondendo outras motivações económicas (num mundo em que a Economia é conduzida fora do domínio dos Estados). Assim, sob a bandeira do ‘Progresso’ e da ‘Modernização’, deram-se passos para trás, num verdadeiro ‘regresso’ a um ‘futuro-passado’.”

Os objectivos do processo de Bolonha assentam numa das mais profundas contradições em que pode cair um pedagogo primário: dizem-nos que precisamos de um ensino assente nas competências, mas basta então perguntar como se pode criar competências sem o saber que as suporte, que as produza. Que este processo seja conduzido por alguém especialista em física é ainda mais de espantar, porque nessa ciência, hoje tão exacta como probabilística, não há competência que valha sem o suporte teórico que a gere. Que se leia a resposta do “velho” Einstein ao “jovem” Heisenberg, resposta de um velho que viveu para a ciência e para a democracia a um jovem que ficou, na Alemanha de Hitler, a servir o nazismo e que pode ser expressa, em síntese, da seguinte forma: não há facto em física que não precise da teoria para o definir como facto.

Sem uma sólida base teórica não pode haver prática consistente, que resista a um mundo em permanente mudança. Querer substituir um ensino abstracto por um ensino prático imediato, querer substituir um ensino assente no raciocínio abstracto por um ensino assente num concreto imediatista é, inegavelmente e em simultâneo, destruir a possibilidade de conseguir o primeiro tipo de ensino, com o qual todos nós nos formámos, e destruir a capacidade de criar as bases necessárias à obtenção das competências de que tantos falam. Os físicos sabem-no bem, mas, ironia das ironias, para isso devem então estar fora do poder e das malhas de qualquer pacto de estabilidade com o qual ninguém afinal se quer justificar. De resto, em Lisboa adoptou-se, no ano de 2000, a Estratégia de Lisboa que tinha como objectivo tornar a Europa “no espaço económico mais dinâmico e competitivo do mundo baseado no conhecimento”, o que implicava um enorme acréscimo de esforços em matéria de investigação e desenvolvimento, de inovação, de tecnologias da informação e de comunicação. Tudo isto deliberadamente falhou. Da ideia de economia mais dinâmica em matéria de conhecimento quase dez anos depois nada resta e, em Lisboa, a alternativa parece ser agora dotar o país com um ensino e formação o mais simplificado e mais barato possível. Ainda aqui vale a pena citar Luís Reis Torgal quando afirma: “Em nome do “actual movimento de modernização de universidades e politécnicos para desenvolvimento de sociedades e economias de conhecimento”, como reza o prólogo da proposta de lei, com chavões que falam por si, poderá estar a matar-se, sem o dizer, a Universidade como um espaço científico e um espaço crítico”.

Julgamos ser tempo de corrigir o erro em vez de se estar sucessivamente a aumentá-lo, conforme se pode inferir no horizonte quanto às dotações orçamentais para o ensino superior. Bertrand Russel tinha razão, quando afirma que “os cientistas esforçam-se por tornar possível o impossível, e os políticos por tornar o possível impossível”. E aqui o possível, como pensável, seria querer aumentar os níveis de formação e de investigação como resposta e como defesa face à economia cada vez mais globalizada, onde as pressões do “mercado” e as tensões sobre os níveis de conhecimento e sobre os quadros altamente formados são cada vez maiores. Que o digam os engenheiros da Renault e da Peugeot, que o diga a direcção da EADS quando deslocaliza centros de concepção e de investigação fundamental, e assim sucessivamente. Que o digam todos eles porque seguramente estes sabem do que se está a falar. Em vez disso perdeu-se uma oportunidade histórica de criar uma Universidade para responder aos mais intensivos desafios que hoje são colocados às sociedades modernas e, por essa via, como sublinha Luís Reis Torgal, “tendo perdido a Universidade uma excelente oportunidade para reflectir sobre o seu presente e sobre o seu futuro”.

Tal como o texto anterior que lhe serviu de base, o presente trabalho é produzido no âmbito da disciplina de Economia Internacional e corresponde agora, como já foi dito, à necessidade de sistematizar, simplificar e tornar mais acessível ou menos trabalhoso para os alunos alguns dos principais resultados da teoria neoclássica sobre o comércio internacional, o crescimento económico e a evolução dos termos de troca. Sendo esta a origem deste texto, é lógico que a preocupação máxima que presidiu à sua elaboração tenha sido de ordem pedagógica, mesmo com risco de várias repetições, quer do ponto de vista temático, quer de apresentação, o que transparece na sucessiva representação gráfica das ideias expostas, assim como no cuidado extremo na formalização matemática. Por esta razão, pensamos que os especialistas em teoria do comércio internacional não irão aqui encontrar nada de original, o que, por um lado, se deve provavelmente à minha incapacidade para o fazer, por outro, porque pretendemos apenas escrever para quem se defronta pela primeira vez com estas matérias e basicamente alunos do primeiro semestre de um terceiro ano.

Por este motivo, não se procurou aqui fazer a crítica aprofundada à teoria exposta nem sequer o pretendemos fazer mais tarde, porque esta exige conhecimentos mais aprofundados do que os possíveis de serem leccionados nesta disciplina. No entanto, a necessidade de uma análise crítica capaz de fornecer aos estudantes uma perspectiva diferente da do universo do Dr. Pangloss, que é transmitida pela teoria neoclássica, é tanto mais importante e necessária quanto os modelos desta teoria “escondem, por detrás de uma imponente fachada de símbolos algébricos, um impalpável conteúdo positivo de raciocínio”. Não temos quaisquer dúvidas que à teoria neoclássica assenta que nem uma luva a crítica de Herbert Simon quando diz: “penso que submeter os espíritos jovens e impressionáveis a este exercício escolástico é um escândalo. Eu, verdadeiramente, não espero dos economistas que retirem dos seus textos os elementos teóricos não válidos, é uma tarefa que não é para já. Mas não conheço nenhuma ciência que tenha a pretensão de falar de fenómenos do mundo real e que faça textos e discursos em tão flagrante contraste com a realidade”[3]. É neste sentido que ainda tentamos fazer com que algumas linhas críticas estejam inseridas no presente trabalho.

É necessário que os estudantes reconstruam, readquiram a sua própria visão do mundo, mas fazê-la é já estar a compreendê-lo, o que só pode ser feito com a ajuda de teorias e conceitos dotados de um poder descritivo e explicativo dos fenómenos. É importante, por isso, ir mais longe nesse sentido pois, caso contrário, corremos o risco de ficar apenas ao nível de “conhecimentos”, com um conjunto de pretensas certezas em que a própria teoria neoclássica prodigamente assenta. Esta pode levar os estudantes a tomar a sua representação do mundo como sendo o próprio mundo e isto quando esta teoria, como reconstrução do real, o deixa, do nosso ponto de vista, quase que completamente de lado. No mesmo sentido, Jacques Généreux vai ao ponto de afirmar “que a cultura neoliberal encontra a sua força na ignorância e na dissimulação dos seus fundamentos…, sendo a sua finalidade formar [pessoas] viradas para a acção e não para a reflexão.”[4] Contra as certezas da teoria dominante, rolo compressor do nosso imaginário e do nosso quotidiano, contra as certezas do “pensamento zero”, para utilizar a feliz expressão de Emmanuel Todd[5], por ausência ou por exclusão da necessidade de qualquer pensamento, julgamos que o papel do professor e dos textos feitos é, não o de oferecer certezas, mas o de procurar levar o estudante a ganhar a capacidade de ter dúvidas, a capacidade de pôr questões.

Parece-nos que hoje estamos cada vez mais distantes dessa lógica mas continuamos a defender que se deve ir mais longe na análise, mas isto significa fazer um outro percurso teórico no interior das hipóteses que sustentam a teoria neoclássica, tais como a ordenação das curvas de indiferença colectivas independentemente da repartição, a formação dos preços ao seu custo marginal, a remuneração dos factores segundo a sua produtividade marginal, a possibilidade de definir uma função de produção ou uma dotação de factores, tão importante na formalização desta corrente na explicação do comércio internacional, a capacidade de definir um stock de factores, a possibilidade de ultrapassar as dificuldades levantadas pela heterogeneidade de bens de capital, não se podendo aceitar a proposta de Magee quando nos diz “if the reader feels uneasy the use of the term ‘capital’ here with its attendant complexities completely ignored, then he should substitute the world ‘land’ for ‘capital’”[6]. Sem comentários! Claramente, o presente trabalho deveria exigir a sua continuação, até pela necessidade de uma visão crítica desta teoria, de modo que os estudantes não fiquem prisioneiros da lógica do “pensamento zero”. Mas isso deixa agora, com a reformulação efectuada, de ser possível, deixa de haver espaço e apetência. Mas não será esse o objectivo pretendido e confesso, com a convicção de que chegamos ao modelo ideal?

Nesta linha de resistências, também não será por acaso que Mário Soares, numa recente visita a Coimbra, nos alertou para o facto de um dos grandes problemas políticos de hoje é a triste realidade de se confundir socialismo com neoliberalismo.

A terminar esta nota prévia não posso deixar de agradecer aos docentes Margarida Antunes e Luís Peres a leitura crítica do texto que a este serviu de base, pela escuta atenta, ao longo de anos, das dificuldades sentidas pelos estudantes na aprendizagem das respectivas matérias, na perspectiva adquirida da melhor forma de os ajudar a compreenderem os temas em análise, pelas suas múltiplas sugestões e pelas propostas de alteração sugeridas e aceites ao longo da sua própria elaboração, sendo para mim claro que sem a sua contribuição não teria sido viável nem o anterior trabalho, nem a sua versão simplificada agora apresentada nas páginas que se seguem a esta introdução muito pessoal. Por isto, podemos mesmo afirmar que o presente texto é também o fruto da contribuição de duas gerações de professores.

Coimbra, Novembro de 2007

ANEXO II

Excerto de uma carta enviada a um antigo ministro da tutela do Ensino Superior

Coimbra, 18 de Abril de 2008

Caro Professor:

Tomo a liberdade de lhe escrever esta carta assente em dois pontos: o primeiro, a expressar a desilusão de quem está a assistira lenta agonia das Universidades, o segundo, para lhe apresentarmos um recente trabalho de grupo sobre a crise actual.

Sobre as Universidades e numa referência rápida quero agradecer-lhe a leitura cuidada que fez dos meus dois textos sobre o ensino superior. A escrevê-los hoje seria mais duro, pois, parafraseando um dos homens que mais me marcou em questões de educação e um texto que lhe mando em anexo, Antoine Prost, tenho o sentimento e a certeza de que estamos perante um Munique pedagógico e científico: capitulamos face à destruição rápida das Universidades, hoje a serem transformadas em liceus de má qualidade. Estamos silenciosamente a destruir ou a impedir que se crie a inteligência futura do nosso país. O termo Bolonha, mas não a declaração de Bolonha que é claramente muito mais séria, é o pretexto, é a capa, apenas isso, sabemo-lo hoje. O objectivo é a redução do défice, é a aplicação estrita de um modelo neo-liberal puro e duro, conduzido desta forma por socialistas, o que é estranho, é a aposta exclusiva nas formações curtas e num momento da curva da História que nos diz que tudo deve ser repensado, curva esta que, no dizer de Fukuyama, se iniciou com Regan e se conclui com a actual crise financeira. A actual política do ensino superior é ao mesmo tempo a aplicação cruel duma lógica de desrespeito total pelos nossos filhos e netos numa sociedade cada vez mais insensível e mais implacável, mais desregulamentada e a partir do próprio Estado, o que ainda é mais estranho. É esta mesma lógica que leva a que jovens com apenas 20 anos, diplomados e desinformados, credenciados por um diploma superior garante da sua não empregabilidade e da nossa incapacidade, sejam atirados para a fogueira do mercado, onde tudo é valido pela ausência de valores que neste predomina, como se tem estado a ver. Mas, agora, atiramo-los em nome da responsabilização individual. Os romanos davam a isto um outro nome, professor!

Certo da sua atenção, pedimos desculpa pela liberdade assumida e pelo tempo tomado e apresentamos sinceramente os nossos cumprimentos.

Atenciosamente

Júlio Mota

* Docente na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra

______________________________

[1] Declaração conjunta dos ministros da Educação europeus, assinada em Bolonha, em 19 de Junho de 1999.



[2] As citações de Luís Reis Torgal são extraídas do seu artigo “O processo de Bolonha e a gestão do ensino superior”, Diário de Coimbra, de 16 de Julho de 2007.


[3] Herbert A. Simon, “The Failure of Armchair Economics”, Challenge, 1986: 18-25.


[4] Jacques Généreux, La Dissociété, Paris, Seuil, 2006, p. 328 e s.


[5] Emmanuel. Todd, L’illusion économique, 1998.


[6] Stephen Magee, International Trade and Distortions in Factor Markets, 1976, p.15.

(Continua)

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