Carlos Loures
Esta nossa conversa, ou, mais propriamente, este solilóquio, poderia muito bem começar assim – o fumo da alucinação e da loucura invade o gabinete de investigação – se preferirem que durante este breve solilóquio não utilizemos eufemismos, digamos, então, antes câmara de tortura. Pronto, agora já está melhor, mais objectivo. Take two – comecemos a narrativa de novo – O fumo da demência, dizia eu, entra em abundantes novelos brancos pelas frestas da porta da câmara de tortura. Sei perfeitamente que o fumo não existe, mas sinto-lhe, apesar disso, o sopro gélido e o odor pestífero. Os bichos, insectos, répteis e aracnídeos – venenosos e vorazmente carnívoros, tão repugnantes como também inexistentes – percorrem o soalho de madeira escura, passeiam-se lenta e provocatoriamente pelas paredes sujas...
Porém, para compensar o horror, realista de uma forma sórdida, do cenário desta produção barata, súbita e quase magicamente, deixo de ouvir a voz monótona do agente estagiário de turno, na sua lenga-lenga moralista, e encontro-me de novo na Guiné, num acampamento de circunstância nas margens do grande rio, a poucos quilómetros do nosso aquartelamento em Tite onde, em Janeiro desse ano, com um forte ataque da resistência, tinha começado a insurreição armada. Agora, a situação era diferente, para bastante pior, com diversos focos de resistência espalhados por todo o território e com os guerrilheiros (os turras da linguagem popular e o in no paleio militar) a trocar as armas artesanais por equipamento mais sofisticado do que o nosso).
Acendem-se-me na memória a floresta húmida, o caprichoso bailado dos raios solares entre os palmares, a vegetação espessa, o rio coleante como uma cascavel esverdeada, os gritos pungentes dos emplumados pássaros, os guinchos trocistas dos macacos e, às vezes, de súbito, sem explicação aparente, a eclosão de um silêncio tão sufocante como o calor e que sempre nos deixava a contas com o ruído do nosso sangue nos ouvidos, com o agitado pulsar dos nossos corações.
Um barco de borracha aproxima-se deixando uma esteira de espuma nas águas verdes do Geba. Um fuzo salta do barco e, dando vigorosas patadas na água, vem colocar na margem uma pilha com quatro grades de cervejas. Depois volta para o «Zebro», fazendo espadanar a água em seu redor, como um garoto traquina. Os outros fuzileiros riem. O furriel António que está a fazer a barba frente a um espelho pendurado numa árvore, corre para o acampamento com a cara branca de espuma de sabão. «São quatro grades, só quatro grades que aqueles nabos do caraças nos trazem! Só quatro grades!», grita para nós. O barco dos fuzos afasta-se já. O que terá dito um deles e que provoca uma gargalhada geral aos seus companheiros, quando o barco se perde num meandro do Geba e dele apenas vai permanecendo o ruído decrescente do motor e a esteira de espuma à tona das águas? Solitárias sobre a areia da margem, só as quatro grades de cervejas garantem que não fomos vítimas de uma miragem ou ilusão.
E o que me interessará agora a provável, mais do que certa, alarvice que o fuzileiro terá dito aos colegas, aqui, nesta sala em que bichos repugnantes e vorazes enxameiam as tábuas do chão, as paredes, o tecto, em que o rectângulo gradeado da janela se povoa de paisagens sempre diferentes e sempre sinistras, ao sabor da loucura que, minuto a minuto, pingo a pingo, como água vinda de uma torneira avariada, me invade o cérebro? Com qual destas realidades me deverei preocupar?
Ao dia sucede a noite, depois vem a hesitante claridade da madrugada anunciar a saída de um extenso túnel para noutro logo voltarmos a entrar. E assim sucessivamente, dia após dia, noite após noite. Um ciclo infernal de alternância entre sombra, escuridão, luz, sombra... E de vozes. Muitas vozes. Vozes insidiosas tentando infiltrar-se nas fendas que a brutal insónia vai rasgando no tecido da memória e da consciência. Aqui, neste quarto maldito, gabinete de investigação – como lhe chama o senhor sub-inspector – câmara de tortura, o que vocências quiserem, eu, o preso («o detido», emenda solícito o senhor agente estagiário, « o senhor só fica preso se for condenado em tribunal») tenho saudades da Guiné, onde as Kalashnikovs ladravam como hienas, as granadas de morteiro ribombavam como trovões lançados por um qualquer deus desmazelado e bêbedo e as minas transmutavam subitamente os corpos, numa alquimia tosca, em sórdido ketchup que se embrulhava em verdes panos de tenda e se enviava depois para a terra em caixas de pinho. Saudades da Guiné, onde a morte fazia, apesar de tudo, um jogo mais limpo e não enluvava as mãos em loucura como aqui, entre estas quatro paredes que dançam para lá das cortinas de fumo e fervilham de bichos asquerosamente trepadores.
Agora, em vez da névoa obsidiante do cacimbo, é este fumo branco, são os bichos e é a voz do agente de serviço, visivelmente o pide-bom do grupo, um dos torcionários que se revezam de quatro em quatro horas, cerzindo em torno da minha cabeça uma coroa de demência, feita de minutos, horas, dias: «O melhor que tinha a fazer era arrumar já o seu caso. Eu ia chamar o senhor sub-inspector, o senhor prestava as suas declaraçõezinhas, esclarecia-se tudo e o senhor ia dormir. Não vê que está a dar cabo de si? Olhe que os seus amigos, os seus camaradas, aqueles que está a querer proteger, não lhe vão agradecer nada o sacrifício que está a fazer por eles, aqui preso, isto é, detido, a passar por este interrogatório tão incómodo» …«Se lhe acontecer alguma coisa (Deus queira que não), não são eles que vão cuidar dos seus filhos»
O negro, um mandinga corpulento e de grande estatura apanhado em cima da sua bicicleta a percorrer a estrada com papéis «subversivos», está estendido num bailique e olha-nos com uma enorme serenidade, enquanto o sargento das informações o zurze com o cavalo-marinho – «Fala cabrão!», grita ao mesmo tempo que bate, possuído de uma raiva voluptuosa. As fibras do tecido da camisa vão aos poucos entrando na carne, vão confundindo-se com ela, criando um pastoso amálgama, uma pasta de pele, sangue e tecido. Um silvo de cansaço, frustração e ódio sai da boca do sargento a cada pancada que desfere. O homem, um professor primário de uma missão católica, quase não acusa no rosto a dor e não emite qualquer queixume, apenas um leve sopro sai dos seus lábios. Com os olhos muito abertos, dir-se-ia que com a curiosidade de um entomólogo, observa o círculo de soldados e o sargento que bate, bate sempre e grita, espumando pelos lábios. Olha-nos, um por um, sem ódio, parece não perceber o que nos leva a matar um ser humano, assim, daquela maneira. «Porquê?», pode ler-se a pergunta no seu olhar.
O agente de patilhas caracteriza-se, não por fazer perguntas ou dar conselhos como os outros. Está especializado na produção de diversos efeitos sonoros: bate com os pés no chão, passa com as unhas no vidro martelado da janela, lança assobios agudos. Dentro da minha cabeça, de preso ou detido, ou lá que raio eu sou aqui, que a sinto inchar como um enorme aeróstato, estes ruídos são ampliados e espalham-se depois por todo o sistema nervoso, como agulhas ou pedaços de vidro largados à solta na corrente sanguínea. O agente ri-se quando me vê estremecer.
O prisioneiro mandinga fita-nos com o seu ar sempre impassível de quem transpôs já a sempre ténue fronteira entre a vida e a morte, aquela linha a partir da qual a dor, a tristeza ou a alegria já não nos conseguem atingir. Depois o cavalo-marinho, com pancadas mais espaçadas, começa também a destruir-lhe o rosto, a única maneira de pôr fim à sua insultuosa serenidade. A mistura de sangue, osso e tecidos, espirra abundantemente para o meu camuflado, tal como para cima dos outros. Devo ter empalidecido. Sinto o estômago às voltas. Um cabo de barbas, um cacimbado ou, como também chamam aos velhos, «um apanhado pelo clima», pergunta-me com a irónica solicitude de um veterano: «O meu alferes está a sentir-se mal?».
Há um outro agente, um tipo franzino que, quando chega para iniciar o seu turno, começa por abrir a gaveta da secretária e olha demoradamente o seu interior com o sorriso de quem confere e aprecia uma vasta panóplia de instrumentos de tortura. Depois fecha a gaveta e fita-me com um ar pensativo e ausente. Há um outro que conta muitas histórias e dá grandes murros na mesa quando me deixo adormecer. Há o mau, o terrível. Ameaça espancar, promete inomináveis tormentos. Pontapeia a porta e as paredes, numa velada promessa. Há ainda o senhor sub-inspector que me vem visitar todas as manhãs e que se finge sempre muito surpreendido por eu ainda ali estar, por «não ter ainda resolvido o seu caso». E há o médico que me vem ver quando desmaio e que sai sempre a abanar a cabeça com um ar de quem está muito preocupado.
Um circo completo.
Ao fim da tarde, quando os ruídos no edifício da sede da polícia vão diminuindo e as sombras vão aos poucos tingindo as paredes, sinto sempre uma tristeza pungente invadir o território nebuloso que é agora o meu corpo. Estou, como Jonas no estômago da baleia, dentro de uma fera estúpida que me vai digerindo e devorando com os seus dentes ávidos. Tal como o cavalo-marinho do sargento fez ao corpo do mandinga, provocando-lhe estremeções convulsivos, pulsões de morte. Tal como ao mandinga, só o sereno desprezo pela fera imbecil me pode agora salvar.
E, ao fechar os olhos por momentos, consigo mais uma vez evadir-me dali e na escuridão crescente acendem-se-me por detrás das cansadas pálpebras as folhas verdes de um palmar, iluminadas pelos reflexos do sol.
Fim de conversa.
(Excerto de A Vida é Un Desporto Violento)
terça-feira, 6 de julho de 2010
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Por mais relatos que se leiam de torturas, causa sempre repulsa e revolta. Dos Gulags a Abu Ghraib. Estes são-nos mais próximos, distinguimos as personagens. Certeiro contra-campo entre as sevicias na guerra e em Caxias; memórias para que perdure a memória.
ResponderEliminarSempre me surpreendeu porque é tão escassa, apesar de algumas excelentes excepções, a produção (ficção ou não ficção) sobre a guerra colonial do ultramar. Tanto por contar, tanto por saber, e tantos sem o querer fazer.
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