segunda-feira, 16 de agosto de 2010

A descolagem de O Aviador Irlandês

O Aviador Irlandês é um blogue da Carla Romualdo e foi um dos que Estrolabio recomendou para o "Blogue de Ouro - 2010" . Alguns colaboradores do Estrolabio conheceram-na no Aventar e puderam avaliar o seu enorme talento, bom gosto e lucidez crítica. O Aviador Irlandês é um autêntico one-woman show - a Carla escreve e os amigos comentam.


A inspiração para o seu blogue, encontrou-o num poema de William Butler Yeats (1865-1939), o grande poeta irlandês, particularmente nos versos A lonely impulse of delight /Drove to this tumult in the clouds... Seguindo esse solitário impulso de prazer, descolou rumo às nuvens da blogosfera em Junho passado.


Com a devida vénia, transcrevemos um texto seu para que os nossos leitores possam apreciar a qualidade da sua prosa e o seu envolvente poder de efabulação:
alvoroço na rua


por Carla Romualdo em Agosto 8, 2010

A Fatinha deveria andar a fazer o que sempre faz: andar de lado para lado, como se sempre estivesse a caminho de qualquer lugar aonde nunca consegue chegar, quase sempre de minissaia, a custo equilibrada nuns saltos altos.

A Fatinha, sendo uma mulher bonita, assusta os homens com um olhar de louca impossível de disfarçar. Crava cigarros, troca frases sem sentido com algum sem-abrigo, pendura-se no pescoço de um homem sentado na paragem do autocarro, insulta uma mulher que a olhou de lado, anda todo o dia na rua, não se sabe em quê, e tanto pode pedir com gentileza um copo de água num café, como chamar puta-badalhoca à velhota que lhe pede ajuda para abrir o guarda-chuva.

Olha-se para a Fatinha, sempre limpa, até bem-vestida, sem marcas de agulhas nas pernas, sem aspecto de quem vive na rua, e não se sabe que mal é o seu.

Hoje a Fatinha deveria andar a fazer o que sempre faz quando deu de caras com a mãe. A mãe dela é uma senhora enxuta, de cabelo prateado, passos rápidos e voz aguda. Tinha vindo para buscar a Fatinha à rua, porque lhe haviam dito que a polícia andava por ali, e foi encontrá-la debruçada na janela do carro de um homem gordo, de cara bexiguenta. Enxotou-a para casa aos berros.

- Eu vou-te internar, ouviste?! – gritava a mãe atrás dela, e a Fatinha caminhava, olhando para trás, em lágrimas, dando-lhe as costas outra vez, gritando-lhe de volta.

- Está bem, mãe, agora pára!

Mas a mãe da Fatinha vê-se que já não pode mais parar.

- E acabou-se o dinheiro para o café, ouviste?

- Pára, mãe!

A Fatinha sacudia-se toda, saltava sobre as sandálias altas. O rímel escorria-lhe pela cara.

- A maior escumalha é quem pára aqui contigo na rua, todos fazem pouco de ti, não vales nada! Perdida!

Solta um grito agudo e a Fatinha tapa os ouvidos, baixa a cabeça enquanto caminha e de repente pára e começa a puxar os cabelos

- Cale-se! Eu vou-me matar, vou, vou, vou!

A mãe levanta o braço, esboça uma corrida que não chega a dar, como se aquele fosse o maior insulto, a maior ignomínia que lhe estava reservada. E a Fatinha corre à frente dela, aos saltinhos sobre as sandálias de plástico, com o beicinho de criança contrariada por ter sido outra vez apanhada em falta. A mãe vai atrás, arrasta os pés cansados, grita de vez em quando, como quem soluça: Minha tola, minha perdida.

E a Fatinha vai olhando para ela, espreitando-a para medir quanto tempo levará a poder sair outra vez, quanto será preciso para que ela a aceite nos seus braços, chorosa, e lhe perdoe a falta de juízo.

Quando as duas desapareceram na esquina, a rua retomou o seu sossego e ninguém voltou a pensar nelas.

4 comentários:

  1. Confesso que não sou muito dada a visitas mas... ainda bem que me lembraram. È muito bom rever a Carla, a sua escrita... Agora com o link não me vou esquecer de... lá ir tomar um chá

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  2. A Carla escreve de forma escorreita - nada lhe falta para nos aparecer com um grande romance. Já lho disse muitas vezes. Reconheço que o primeiro romance implica uma tomar uma decisão difícil - imaginem um engenheiro civil, habituado a fazer moradias e que de repente tem de construir um arranha-céus... Carla, venha esse arranha-céus.

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  3. Sou uma visita assídua do sítio da Carla. Gosto muita da sua escrita. Fico muito contente por a ver aqui

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