Carlos Loures
Está a fazer 35 anos era o «Verão Quente». A esquerda tomava o freio nos dentes. Parecia que nada a iria deter. Quando falo de esquerda, não incluo o Partido Comunista, falo dos pequenos partidos – MES, PRP, UDP… que chegaram a ter uma capacidade de mobilização superior à do PCP. Era o “Verão Quente”, o despertar dos mágicos.
Num jornal diário que há muito desapareceu, o Portugal Hoje, publiquei uma série de textos a que dei o título «Repensar a esquerda». O jornal estava ligado ao PS, partido com o qual nunca tive nada a ver, a não ser o facto de ter alguns bons amigos que eram (e muitos ainda são) militantes socialistas. Estava-se em 1980, o PS era tão diferente do que é hoje que até convidava esquerdalhos como eu a colaborar num jornal oficiosamente seu. E não me foi imposta qualquer condição - podia escrever o que quisesse. E assim fiz. Iniciei um balanço às causas da falência da Revolução de Abril, enquanto movimento popular. A um dos textos chamei «O tumultuoso despertar dos mágicos». Referia-se o título a um livro que na época estava muito na moda «O Despertar dos Mágicos» (Le matin des magiciens), de Louis Pauwels e Jacques Bergier. Era coisa ligada aos chamados factos insólitos, às religiões, às ciências ocultas e ao esoterismo. Um manifesto do fantástico, como lhe chamaram. Em suma, o meu texto nada tinha a ver com o tema. Mas achei o título giro e não resisti à tentação de o utilizar. E venho recordar alguns passos desse texto.
A partir das eleições legislativas de 1969, as que desmascararam a «primavera marcelista», criaram-se no seio da CDE duas correntes, Uma maioritária onde coexistiram durante algum tempo elementos dos actuais PCP e PS (que viria a sair e a constituir a CEUD), defendendo formas de luta legais, e outra minoritária, que defendia formas de luta mais radicais, nomeadamente no que se referia à denúncia da guerra colonial. Os primeiros (PCP, PS e republicanos históricos) eram, na linguagem dos segundos, os «reformistas»: os segundos, eram designados pelos primeiros como «esquerdistas». Na campanha de 1973, a corrente «esquerdista» organizara-se e parecia ter alguma coesão.
Não vou reproduzir o que disse há quase trinta anos, pois quase nada do que disse na altura, protestando contra o divisionismo, faz actualmente sentido. Vou lembrar três momentos, ali referidos, dessa luta surda que se travava no seio daquilo a que se chamava a «esquerda» - alguns, mais lúcidos, já diziam «as esquerdas». Recordei um plenário da CDE que se realizara numa garagem de Odivelas em 17 de Janeiro de 1973. A ordem de trabalhos privilegiava pontos tais como o recenseamento eleitoral, o aproveitamento político da campanha para organizar o movimento, pontos em que o PC, que manipulava as comissões eleitorais, insistia sempre. A chamada extrema-esquerda, os embriões dos pequenos partidos, já existiam. Tínhamos um movimento unitário, as CBS – Comissões de Base Socialistas – onde, num equilíbrio sempre instável e tenso, convivíamos se assim se pode chamar à maneira como nos tratávamos uns aos outros. Sobretudo os maoístas eram impossíveis de aturar; detentores daquelas verdades «irrefutáveis» que aprendiam no «Livro Vermelho»,escrito para os camponeses da China, mas que eram aqui utilizados no sentido metafórico. Por seu turno, os trotskistas assumiam um ar contido e sábio, de quem estando de posse da Verdade – com V – nem precisa de a discutir. Mas adiante - voltando à tal reunião, um de nós, da tal CBS, apresentou uma proposta à mesa no sentido de na Ordem de Trabalhos ser incluído um ponto sobre a guerra colonial. Usando as habituais manobras processuais, o presidente afecto ao PCP (um «compagnon de route» do MDP/CDE), recusou a proposta. Nós também não éramos santos e, com propostas, requerimentos, votações, declarações de voto, fomos adiando o início da O.T., a tal conversa de xaxa do costume, que eles traziam no bolso. Três ou quatro horas depois do começo da reunião, puderam enfim «dar início aos trabalhos». Mas havia já delegados a debandar, porque «fazia-se tarde». Um fracasso. Destacou-se, pela sua acutilância «anti-reformista», o Adriano de Carvalho, um jornalista brilhante, colaborador de O Século, que estava ligado ao embrião do MRPP. A reunião apenas teve a utilidade de nos permitir confirmar que: a) – a esquerda anti-reformista nunca se entenderia com o PCP; b) que essa esquerda nunca se entenderia entre si.
Um segundo momento dessa luta foi quando, também em 1973, no Verão num pinhal da praia de Santa Cruz, se realizou uma reunião plenária da CDE, a nível nacional. A maioria pecepista era esmagadora, cerca de ¾ dos mais de 400 delegados. A minoria anti-reformista, gente que viria a constituir o MES, o PRP, a UDP, a LCI, grupos católicos, e outros pequenos movimentos, éramos apesar de tudo, mais de uma centena. A mesma luta – nós a querermos debater os problemas cruciais do País, nomeadamente a guerra colonial, e eles a recusarem-se. Um rapaz ruivo, nervoso, que usava «pá» como frequente muleta do seu discurso, fez uma intervenção vibrante, recusando «os anátemas sinistros» que os pecepistas lançavam contra quem não estava de acordo com a sua linha, indo ao ponto de sugerir que essas pessoas ao querer discutir «temas provocatórios» (tais como a guerra colonial), estavam ao serviço da polícia política.
Foi estes anátemas sinistros que Jorge Sampaio, pois era ele, condenou num discurso aplaudido pela parte minoritária da reunião – que logo abandonámos em massa, deixando o PC e os seus «compagnons de route» a falar sozinhos. Foi a ruptura com a CDE. E a unidade cada vez mais longe. Até porque os cisionistas sofreram uma primeira cisão. O documento em que uma parte dos delegados explicava por que saíra da CDE, foi vivamente contestado por outra parte que considerou a posição assumida no texto «inexacta e mistificante. No primeiro grupo, o do documento, havia militantes do futuro PRP-BR, que se constituiria em Setembro desse ano, em Argel, da LCI e da URML, no segundo grupo, anti-documento, grosso modo, estavam os que viriam a formar o MES.
Terceiro momento – Noite de 19 de Maio de 1974, na Voz do Operário em Lisboa. As tais Comissões de Base Socialistas, através da LCI (trotskista), do PRP e da URML organizaram um comício, um dos primeiros do pós-25 de Abril. Estava tudo a correr bem, quando um trotskista na sua intervenção referiu algo como «os 50 anos de terror estalinista»; parte da sala irrompeu em gritos de indignação, outra em aplausos. Como estava tudo misturado, aqui e ali irromperam focos de pancadaria, com os PRPês a servirem de corporação de bombeiros, tentando extinguir os fogos. Valeu a palavra oportuna e pacificadora de Isabel do Carmo que apossando-se do microfone, conseguiu que a reunião continuasse, embora com as asas negras do sectarismo adejando sombriamente sobre a sala. Como se vê, poucos dias depois da euforia fraterna do 1º de Maio - reparem na fotografia acima, onde até há uma ingénua (?) saudação ao Spínola - os grandes cismas do movimento operário caíam com as suas toneladas de peso em cima da frágil unidade de esquerda: Trotsky, Lenine e Estaline e outros doutrinários, eram arrancados aos seus túmulos e mausoléus e, estremunhados pelo sono eterno, vinham pelas mãos dos discípulos portugueses, cavar intransponíveis fossos. As CBS, primeira tentativa de organização unitária da extrema-esquerda, morreu de morte natural. Sabemos o que aconteceu com os GDUPs, uma segunda tentativa que, tendo algum êxito eleitoral devido ao prestígio de Otelo (mau grado as calúnias reformistas), foi como estrutura unitária um rotundo fracasso. As estruturas de base desse movimento ou eram dominadas pela UDP (os «fininhos») ou pelo PRP (os «metralhas»). «Fininhos» e «metralhas» envolveram-se numa guerra e os objectivos comuns perderam-se. E houve outras tentativas, mas sempre dominadas por um movimento, era a consabida «chico-espertice» de atrair incautos ao redil. Falharam, todas elas.
A esquerda começou mal, embora no seio do MFA, uma parte importante da esquerda militar, fosse antipecepista. Nas assembleias de base, comissões de moradores, comissões de trabalhadores, nas faculdades, os princípios genéricos da esquerda não-reformista ganhavam terreno sobre os que queriam aqui reproduzir uma realidade soviética visivelmente moribunda. Militantes do PCP aderiam aos princípios não reformistas que, na sua simplicidade esquemática (tinha de o ser, para fugir às matrizes maoístas, trotskistas, blanquistas…) se apresentava como mais sensata do que a «ditadura do proletariado», submetida ao comité central do PCP. A esquerda começara mal. Tivera o pássaro na mão, mas era uma mão com tantos dedos que, embaraçando-se uns nos outros, deixaram o pássaro fugir.
Também se deve dizer uma coisa: uma vitória da esquerda como por diversas vezes se esboçou durante o PREC, teria levado Frank Carlucci, embaixador norte-americano e homem da CIA a soltar os cães da guerra, que no caso vertente, poderia ser a divisão Brunete que, quando da invasão da Embaixada de Espanha diz-se, chegou a estar na fronteira e que, dizia-se também em poucas horas os seus 330 blindados estariam em Lisboa. Claro (entremos no campo da fantasia) que com um milhão de homens habituados a combater (era a estimativa da soma entre combatentes no activo e veteranos da guerra colonial «em bom estado») e com armamento ligeiro que chegaria para todos, os invasores teriam um osso duro de roer. Mas teria sido um banho de sangue. Muito provavelmente estaríamos no mesmo sítio onde estamos, mas com mais recordações amargas e heróicas, com mais órfãos, viúvas e as vítimas inocentes do costume. Sobretudo, poucos de nós estariam. Teria sido uma lição dura.*
Os mágicos resolveram voltar a adormecer. Quando acordaram, alguns «ganharam juízo» e andam por aí em administrações, depois de terem sido ministros ou secretários de estado, deputados no mínimo. Houve quem já passasse os lugares aos filhos e «goze a merecida reforma». Outros, os tontos idealistas, continuam pobres, dedicaram-se a ver televisão, a beber umas bujecas, e a chatear os filhos e os netos com as suas memórias; há os que nunca aprendem, persistentes, a distribuir panfletos a fazer bancas de jornais e opúsculos, (ou a colaborar em blogues). O costume.
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* Em 27 de Setembro de 1975, um Franco agonizante à frente de uma ditadura moribunda, mandou executar cinco independentistas bascos. Apelos de todo o mundo, inclusivamente do papa Paulo VI, chegaram ao empedernido e velho bandido que quis levar consigo para as trevas aqueles cinco jovens. Consumada a execução, treze países cortaram temporariamente relações diplomáticas com o estado espanhol, entre eles a Alemanha Democrática. O México pediu a expulsão de Espanha da ONU. Aqui, parámos momentaneamente com os nossos «afazeres» mais ou menos revolucionários e com as nossas lutas e um grande sentimento de revolta cresceu por todos os sectores. Miguel Torga, o grande poeta, leu aos microfones da Emissora Nacional uma mensagem onde dizia »Como poderia Franco selar a crónica negra da sua vida senão com uma nódoa vermelha de sangue? Os cinco executados desta madrugada são o remate inexorável da tragédia humana que foi a passagem pelo mundo do mais cruel dos Torquemadas». Ary dos Santos, no seu tom empolado, declamou as palavras de Torga noutra estação. Os ânimos incendiaram e à noite a Embaixada de Espanha foi invadida e vandalizada. Por esquerdistas disse-se e parece que sim. No entanto, assinale-se que o poeta Miguel Torga era conotado com o PS e José Carlos Ary dos Santos era militante do PCP. Foram eles, ligados à «esquerda responsável», que incendiaram os ânimos. A mão-de-obra terá sido fornecida pela extrema-esquerda. Mas ia dando um grande sarilho, embora o VI Governo se tenha apressado a pedir desculpa ao governo espanhol.
segunda-feira, 2 de agosto de 2010
Há 35 anos: Lisboa já está a arder?
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Em caso de invasão era uma "luta porta a porta".Dizia-se, os militares profissionais, que os tanques Madrilenos na primeira investida, nos empurravam todos para o mar, Portugal não tem profundidade para aguentar tal investida. Esteve preto!
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