terça-feira, 3 de agosto de 2010

Novas Viagens na Minha Terra



Manuela Degerine

Capítulo LXVIII

Décima oitava etapa: de Barcelos a Ponte de Lima

Saímos dos bombeiros antes das sete, atravessamos o largo da feira, encontramos a sinalização amarela, seguimos na direcção de Vila Boa. Começa então a chover. Na preparação da viagem, preveni-me do calor que, imaginava eu, me estragaria o mês de Maio...

O menos perspicaz dos meus leitores terá percebido que não morro de amores por este adversário do conforto, da estética e do espírito crítico portugueses. O calor é um mau momento que em Lisboa se prolonga por, no mínimo, três meses. O calor obriga-me a passar o Verão dentro de casa e de meia dúzia de outros espaços, como a Torre do Tombo ou a biblioteca nacional, onde encontro trabalho absorvente e um mínimo de frescura, impede-me de fazer, no tempo livre, aquilo que prefiro, isto é, andar pelas ruas, a pé ou de bicicleta, leva-me, por razões estritamente térmicas, a maiores despesas, pois faço compras em sítios nos quais, durante o Inverno, nunca ponho os pés. O calor desnuda os corpos e, ao contrário do que pensa a maioria das pessoas, nem todos os corpos ganham em se desnudarem: os pêlos, as banhas, as varizes, as cicatrizes, as marrecas, as pernas cambas e as carnes flácidas expõem-se na glória estival e constituem, na Avenida Almirante Reis que, cada dia, subo e desço, um desfile de pesadelo. (Já nem falo das praias onde, durante o Verão, não arrisco os olhos.)

O prazer do calor tornou-se em Portugal um lugar-comum. A palma da doxa preguiçosa, do cavaco estereotipado e portanto da vulgar brotoeja pertence com justiça aos locutores da Antena 1 que, cada dia, a meio da manhã ou da tarde, vos dão os pêsames logo que passa uma nuvem no céu.

Uma amiga francesa, vinda em Julho a Lisboa, diz-me um dia, prostrada pela canícula:

- Fico admirada com os portugueses... Ainda há pouco, na rua, olhava para as pessoas: manifestam um estoicismo espantoso, parece que nem sofrem com tanto calor...

Explico que o fenómeno resulta da auto-sugestão. Os portugueses ouvem dizer que nada existe de mais agradável que o calor, sinónimo de sol, areia e escaldões, tudo supinamente agradável, tudo supostamente saudável, por conseguinte, mesmo quando sofrem, no meio das ovelhas termófilas, para não chamar a atenção, conseguem convencer-se do contrário. O sol provoca o cancro da pele – que importa? O calor reduz a capacidade de acção e até, com frequência, mata – porém os portugueses comportam-se como se delicioso lhes parecesse e passam férias no Brasil quando, se buscassem bem-estar, prefeririam a Serra da Estrela. A maioria das pessoas tem medo de manifestar gostos, opções e opiniões singulares, esconde-se atrás dos outros e, por a Antena 1 dizer que, havendo nuvens, deve ficar “tristinha” – fica de imediato “tristinha”.

Eu rejeito os diminutivos e o conformismo.

9 comentários:

  1. E o texto é tão forte que houve momentos em que me senti culpada por estar deitada, preguiçosa a gozar o sol da amnhã. Aquele que aquece meu corpo e me deixa sonolenta. Esse mesmo que se faz companheiro.

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  2. Não posso estar mais de acordo.Nunca gostei do calor.Nunca gostei de praia (só se for a partir de Setembro)os corpos à torreira, a maioria feios, a areia que entra por onde não deve, a roupa que se cola ao corpo, as multidões com o ar de que estão muito felizes...

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  3. o que é isso dos corpos feios? uma ditadura a ditar a beleza?

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  4. Nenhuma ditadura, mas as pessoas, especialmente no verão, não têm pudor.Na praia não se deitam "esponjam-se"!

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  5. por onde viaja o bom senso, quando a loucura está cansada? Por favor, diz-me que a tua estética não proíbe os gordos e os baixos...
    dá-me essa esperança!

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  6. Não é uma questão de estética é uma questão de as pessoas andarem afogueadas, a suar, irritadas, sonolentas, e a outra metade vão para o calor em vez de fugirem dele.Nunca gostei do Algarve, falta-me o ar.

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  7. Não é estética, é uma parte anda afogueada e a outra metade anda muito feliz debaixo da torreira do sol, em vez de fugir dele.

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