terça-feira, 10 de agosto de 2010

Novas Viagens na Minha Terra

Manuela Degerine


Capítulo LXXIV

Décima oitava etapa: em Ponte de Lima Sérgio foi conduzido em primeiro lugar ao dormitório colectivo, instalado num amplo sótão com as traves visíveis, sou a segunda peregrina porém, por discrição, instalo-me numa cama afastada dele. Poiso a mochila no brilhante soalho, tiro as roupas secas, os produtos de higiene e sigo para o duche. Este espaço é colectivo, permitindo assim, com o albergue cheio, maior capacidade de banho; por isso, embora a camarata seja mista, há duches femininos e duches masculinos. Dispo-me, avalio a temperatura da água – logo entra, também nua, a alemã que, na véspera, conheci no duche de Barcelos. Rimo-nos: nunca nos encontrámos vestidas. Quando volto ao dormitório, o pessoal começou a instalar-se, espalhou mochilas, botas, varas e bordões, há impermeáveis suspensos nas traves acessíveis e mesmo – para mim – inacessíveis, surgiram várias cordas com roupa, toda molhada pela chuva já que, para a lavada, existe um espaço ad hoc. Apesar das restrições quanto ao peso que trazemos às costas, noto uma quantidade assinalável de livros em cima dos sacos-cama, alguns roteiros, certo, mas não só; como já notei entre Coimbra e o Porto, os peregrinos de Santiago pertencem a grupos sócio-culturais acima da média.  O tempo continua tão húmido que desisto de lavar a roupa de hoje; vestirei a que trago de reserva.   Sérgio revê a documentação. As próximas etapas parecem-nos curtas pois não passa, cada uma, dos vinte quilómetros. Como disponho de pouco tempo, combinamos que amanhã, se chegarmos cedo a Rubiães, prosseguimos na direcção de Valença – percorreremos duas etapas num dia. A distância entre o meu poiso e o de Sérgio não é cómoda: se tivesse optado pela cama do lado, podíamos conversar enquanto prossigo a sempre demorada cerimónia dos sacos: abrir, fechar, tirar, arrumar, voltar ao precedente saco, procurar outra necessária utilidade. Decidimo-nos por fim a ir jantar e, não menos importante, buscar vitualhas para as etapas do dia seguinte porém, como não conhecemos Ponte de Lima, parece-nos preferível passear antes de carregarmos com as compras; e, na verdade, estando habituada, tanto em Lisboa, como em Paris, a fazer compras depois das oito e meia, não presto atenção ao tempo. Uma hora mais tarde, procuramos uma loja de fruta, fazemos vasta e pesada provisão. Em seguida buscamos queijo (eu), fiambre (Sérgio), obtemos rações muito apetitosas. Só nos falta o pão para amanhã. Inquirimos onde fica a padaria, respondem-nos que fechou, aconselham um supermercado, vende pão branco e leve, branco e frio... Desandamos. Gostamos demasiado de pão para nos contentarmos com tal insipidez.  Voltamos à loja de fruta, indagamos onde comprar pão. A rapariga sublinha que é tarde, o que neste instante, apesar de forasteiros, já abrangemos, tentemos na pastelaria, do outro lado da rua; talvez o dono ainda ali se demore. Entramos na loja já inquietos: sem pão não chegaremos a Valença. O dono da pastelaria prepara-se para fechar.  - Não: hoje vendi tudo. Fitamo-nos, desolados. A Maryvonne, uma amiga minha, costuma dizer que, durante uma caminhada, até a má comida ganha qualidades gastronómicas – tem razão. Daí a estragarmos o queijo e o fiambre com aquele conglomerado de farinha rasca, glúten e fermento químico... Não pode ser. Expomos a situação: amanhã às seis e meia seguimos para Valença e o roteiro recomenda que nos aprovisionemos em Ponte de Lima. O senhor é simpático, começamos a conversar. A certa altura, olho para trás, vejo um cesto de pão. - Ah! É o que preferimos... Está vendido? Que pena! - Não: esse é de ontem. - Não está vendido?!... Então podemos levá-lo! - Não, não, esse é de ontem: não o posso vender. - Mesmo de ontem, com este aspecto, só pode ser bom. Venda-nos meia dúzia de pães. - Se quiser, sirva-se: é de graça. Não esperamos que repita, escolhemos seis pães, insistindo em os pagar, o senhor porém recusa, pergunta por onde passamos, confia-nos que, com tantas auto-estradas, hesita em sair da região, faz os circuitos quotidianos, pouco além se aventura. Entretanto pegou numa caixa, começou a enchê-la com bolos e, quando nos despedimos, oferece-nos também os bolos. Saímos da pastelaria muito gratos e inseguros... É evidente que, inseridos na peregrinação jacobeia, nos prestamos, mesmo involuntariamente, a mal-entendidos.

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