sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Novas Viagens na Minha Terra

Manuela Degerine


Capítulo LXXVII

Décima nona etapa: de Ponte de Lima a S. Roque (conclusão)
 Atravessamos riachos transparentes, subimos encostas íngremes,descemos um pouco, voltamos a subir, paramos um instante para apanhar morangos – deliciosos – à beira do caminho, admiramos o panorama das serras, envoltas num pouco de bruma, suficiente para mais belas parecerem, passamos por debaixo da auto-estrada, miramos a água límpida do rio Labruja, que longe me sinto da Póvoa de Santa Iria, atravessamos por uma chapa vertiginosa, interrogando-me eu como seria ontem, com tanta chuva, avançar por este metal sem corrimão, inevitavelmente escorregadio, o caminho torna-se mais íngreme, percorremos alguns metros de via romana...
A chuva de ontem iluminou a verdura. Notamos esta frequente arquitectura paisagística: um grupo exterior de árvores delimita o terreno, em seguida, mais dentro e mais abaixo, aparece a vinha suspensa nos postes de granito e, ainda mais dentro e muito mais abaixo, as plantas que, quando a terra for lavrada, cederão o lugar às culturas: de milho, por exemplo.
Há folhas mais ou menos grandes, mais ou menos densas, mais ou menos escuras, com formas que reconheço ou não... Há árvores com copas muito variadas. Há ervas rasteiras, gramíneas, trepadeiras... Há sebes de giesta. Há riscos cor-de-rosa nos campos verdes, súbitos e vibrantes como um berro: as digitálias. Há muros cobertos com flores de sedum, neste cor-de-rosa muito claro e delicado... Um murmúrio. Há grandes manchas de ínfimas flores para mim desconhecidas: quatro pétalas brancas com um centro amarelo.

Chegamos a Revolta. A mercearia encontra-se afinal aberta: reencontramos os namorados alemães, que também fazem uma paragem; nós prosseguimos o caminho. Mais adiante conversamos com uma aldeã já idosa, a qual sobe a rua, curvada, levando uma caixa no carro de mão. Pergunto-lhe se, noutros tempos, não a levaria à cabeça. Concorda comigo mas, pretexta ela, agora doem-lhe as costas. Suspeito que encobre a verdadeira razão: o estigma social de trazer carregos à cabeça. No modelo dominante, que é urbano, Todo-o-mundo tem lombalgias mas Ninguém põe nada à cabeça.
Frequentei em Paris as aulas de um professor de ioga que me ensinou coisas tão básicas como sentar-me, levantar-me e caminhar – que todavia eu ignorava. Este professor, um francês, mostrou-me fotografias de portugueses que, dos campos da Madeira às salinas de Aveiro, transportavam pesos à cabeça e, aos setenta anos, tinham uma coluna vertebral mais jovem do que os actuais adolescentes. Aqueles camponeses já não são deste mundo, os vivos – se é que ainda há camponeses, se é que, mesmo em Revolta, não são todos citadinos – estão deformados pelo sofá, pelo tractor e pela alimentação. As únicas ocasiões em que alguém põe pesos à cabeça são agora algumas aulas de ioga, nas quais damos duas voltas à sala com listas telefónicas, buscando a postura descontraída que permite equilibrá-las – sadia para a coluna vertebral.
Na verdade... Em Lisboa, uma ou outra vez, embora excepcionais, tenho visto africanas com pesos à cabeça; desaparecidas as varinas há mais de três decénios, são as últimas mulheres com a majestade da Vénus de Milo. E também encontrei, no trajecto entre Graja e Alvorge, um camponês direito e elegante como nenhum citadino... tenha este a idade ou o estatuto que tiver.
Passamos a Casa da Bandeira, chegamos a uma mata, continuamos a subir, por caminhos íngremes, belos e pedregosos. Chegamos à Cruz dos Mortos, ao pé da qual cada peregrino de Santiago costuma deixar uma pedra, alguns até deixam papéis com mensagens, fotografias, fulano passou aqui em tal data, a tal hora, avante, não desanimem, vão quase no cimo, etc. O conjunto lembra-me a base da estátua do Padre Cruz no Campo de Santana. Eu, perante tamanha acumulação de vestígios: não deixei nada. (O meu companheiro de viagem também não sentiu tentações de participar neste rito pagão.)
O percurso torna-se cada vez mais íngreme. Em alguns lugares, já nem caminhamos, trepamos pelas pedras... E que útil a vara, também para subir... Chegamos à Portela Grande: o cume dos quatrocentos e cinco metros. (Lha Gyalo, os deuses triunfam, costumava Alexandra David-Néel exclamar, à maneira tibetana, quando atingia um cume: não raro acima dos quatro mil e quinhentos metros. Justificava-se.)
Fazemos uma pausa, sentados num rochedo, passam andarilhos esbofados, esbaforidos, com os bofes fora da caixa...
- Buen camino!
Exclamam todavia os bravos aldeagantes, carregando com mochilas tais que, só de as ver, sinto bolhas nos ombros.
Começamos a descer pelo mesmo caminho pedregoso, através de uma mata com eucaliptos, pinheiros, fetos, tojo, urze... Passamos um riacho. Mais adiante atravessamos uma ponte medieval. Entramos em São Roque.
É meio-dia. Sentamo-nos em cima de um muro. Os peregrinos continuam a passar à nossa frente. Somos na verdade numerosos. Nós decidimos almoçar e, após uma pequena pausa, prosseguir na direcção de Valença.
Mais dezoito quilómetros.

1 comentário:

  1. Andar é um exercício fantástico.O sofá é a mais perigosa das invenções, e ler o jornal no sofá é hérnia discal certa.

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