segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Novas Viagens na Minha Terra

Manuela Degerine

Capítulo LXXX

Vigésima etapa: em Valença

Capítulo LXXIX


Verifico as possibilidades culinárias e concluo o que, daqui em diante, se tornará uma evidência: nos albergues dispomos quase sempre de uma cozinha virtual. Reservaram-nos um espaço ad hoc, onde puseram um fogão e um frigorífico, que preserva as aparências pois, para nos desencorajarem, basta esquecerem-se da loiça; como, carregando com a mochila, raros atletas se podem dar ao luxo de a trazer, mesmo mínima, mesmo de plástico – fica o assunto arrumado. As excepções a esta regra são o albergue de Ponte de Lima – em tudo o melhor – e, embora com menos brio, o de Pontevedra, lá mais para a frente. Aqui há uma cafeteira para aquecer água. E um copo de vidro. Se mais ninguém anexar o copo, beberemos chá – um de cada vez.
Entretanto tomo duche, lavo a roupa de hoje e a de ontem – seca só me resta a que agora visto. Descubro que tenho mais duas bolhas – acrescento dois pensos ao patchwork. Depois abro e fecho sacos de plástico, arrumo e desarrumo a mochila... O meu costume.

Encontro Sérgio a conversar com o casal italiano. Quando chegámos e eles partiram, notei – quem não notaria? – que a italiana tem a cara ferida, negra e inchada; nem pode abrir um dos olhos. O rosto encontra-se de tal modo escuro e deformado que, no primeiro olhar, pensei tratar-se de uma sul-americana, colombiana ou algo assim; lancei ao homem um olhar inquisidor. Habituei-me a cruzar, na Almirante Reis, os casais da luta pela sobrevivência, um português velho com uma brasileira jovem, ambos rudes e incivis, a simbiose da miséria; não são, é certo, o género que percorre o Caminho de Santiago. Nestes italianos vejo uma aparência equilibrada, com idades próximas e atitudes compatíveis; e percebo que, para além dos ferimentos e tumefacção, ela tem a pele e os olhos claros.
- Caíste?...
Ontem, na etapa entre Barcelos e Ponte de Lima, as pedras estavam molhadas: escorregou. O marido chamou os socorros, levaram-na para o hospital, onde lhe fizeram exames – não havia lesões graves. Por isso eles hoje apanharam um autocarro para Valença e prosseguem amanhã a caminhada para o Porrinho.
Esta italiana percorreu antes o Camino Francés e queixa-se de haver pouca gente no caminho português. Isto que, para mim, é uma vantagem, parece decepcioná-la pois apreciava a força e a fé – é católica praticante – que os outros peregrinos lhe comunicavam.
Saíram para jantar mas encontraram uma churrascaria, compraram frango, costeletas e arroz suficientes para todo o albergue – convidam-nos a participar no festim.
Os nossos anfitriões, muito distintos em tudo, mostram-se loquazes, contam-nos o Camino Francés, as raízes venezianas, expõem as virtudes do arroz, uma bomba de energia, dissertam sobre a maravilhosa simplicidade que a peregrinação impõe, reduzida a mochila ao essencial... Parece-me a lição supérflua para quem dispõe, em Veneza – informou ela num circunlóquio distraído – de vinte e seis divisões; porém se, para eles, constitui um ensinamento, por que não? A italiana fala mais do que o marido; o qual se limita a confirmar. Desolo-me por não compreender o italiano ao ponto de saborear as palavras, imagino-as à imagem dela, refinadas, um pouco démodées – um regalo para os ouvidos.
Sérgio, quando fala em italiano, usa uma forma de tratamento que marca o respeito: lei. A compatriota corrige-o:
- Aqui todos somos peregrinos.
E trata-o por tu.
Mais tarde Sérgio defenderá que ela quis desenhar uma fronteira. Fez um aviso: em qualquer outro contexto a forma de tratamento seria lei. Talvez por não ser italiana e portanto não compreender, com todas as subtilezas, o que foi dito, o tom e as palavras, suas denotações e conotações, parece-me natural e até evidente que, se ele a encontrasse noutras circunstâncias, empregasse lei e aqui empregue tu; caminhamos num mundo cujas regras não coincidem sempre com as da vida quotidiana, encontramo-nos, de alguns pontos de vista, mais perto do mundo real mas, de outros, afastamo-nos de maneira evidente. Não percebo portanto a reserva que, daqui em diante, quando encontrarmos este casal, agora tão amável e generoso, sempre tão cordial e polido, o meu companheiro de viagem não deixará de manifestar. Narro aqui o episódio por, de um ponto de vista sociolinguístico, me parecer interessante, pois expõe o modo como, pelos vistos, também em italiano, as formas de tratamento podem complicar um encontro. Através delas exprimimos a maneira como situamos o outro em relação a nós; e esta posição não corresponde sempre à que o outro pensa ou deseja merecer. (Costumo prevenir os alunos franceses em relação às formas de tratamento portuguesas. Cuidado: é material explosivo.)

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