segunda-feira, 16 de agosto de 2010

A Catalunha e Portugal - Bon colp de falç - 1

Encerrando esta primeira série de textos sobre a Catalunha, apresentamos um trabalho de Carlos Loures e Josep A. Vidal, sobre os incidentes que, em 1640, em Portugal e na Catalunha, puseram em causa a hegemonia castelhana na Península e que tiveram resultados diferentes num e noutro país. Este texto foi publicado, em Dezembro de 2009, no blogue Aventar,



(Texto de Carlos Loures e Josep Anton Vidal)


Há quase 370 anos, em 1 de Dezembro de 1640, Portugal recuperava a sua independência perdida 60 anos antes. Todos sabemos, até aos mínimos pormenores, como foi esse dia «em que valentes guerreiros / nos deram livre a Nação». Interessante que os catalães têm a ideia de que lhes devemos a libertação do jugo estrangeiro. E afirmam que foi o facto de os castelhanos terem de deslocar tropas para a frente catalã que nos permitiu, apanhando os ocupantes fragilizados, restaurar a independência. Independência que, formalmente, sempre conservámos, embora com um rei estrangeiro no trono.
 Em parte, isto é verdade. Mas só em parte. Tal como só em parte é verdade que tenham sido os conjurados, os «valentes guerreiros que nos deram livre a Nação», como se canta no tal hino escrito para uma peça teatral em 1861, por Eugénio Ricardo Monteiro de Almeida (1820-1869) numa visão romântica de uma realidade bem mais dura. A letra parece ter sido escrita por plumitivos ao serviço do regime salazarista. Regime que aliás aproveitou o hino e o tornou coisa sua, com honras especiais na organização para fascista da «Mocidade Portuguesa». Hoje, o hino é trauteado, como vamos ouvir no vídeo abaixo, pelas populações raianas. A música ficou, mas a letra foi esquecida, como merecia coisa tão rebuscada e falsa. Tipicamente romântico e falseador da realidade é também o quadro de Veloso Salgado (1864-1945) que vemos acima. Sabemos ser impossível expurgar a História de todos os mitos. Mas podemos, pelo menos, tentar libertá-la de alguns deles.




A verdade completa é um pouco diferente da versão catalã e dos mitos românticos que se forjaram em Portugal no século XIX. Em síntese, a verdade é que durante 28 anos aguentámos uma guerra que mobilizou desde rapazes de 16 anos a velhos à beira da cova, deixando os campos abandonados, trabalhados por mulheres e crianças, e que nos obrigou a fundir os sinos das igrejas para fabricar canhões, a desviar para o esforço de guerra os parcos recursos de uma economia débil. Construíram-se ao longo da fronteira sólidas fortalezas que ainda hoje estão em bom estado de conservação. Contrataram-se técnicos militares estrangeiros para reorganizar um exército desmantelado ou articulado de acordo com os interesses do invasor – oficiais, engenheiros… Tivemos alguma ajuda francesa,  algum apoio inglês, mas a pior parte foi feita por nós. A vitória em batalhas como as de Montijo (1644), Linhas de Elvas (1659), Ameixial (1663) e Montes Claros (1665), foi um factor decisivo.

Ganhámos a guerra. Ao fim de quase três décadas e de milhares de mortos, das cidades e vilas raianas devastadas pelas frequentes incursões inimigas, ganhámos e a nossa independência foi reconhecida. Porém, hoje queria ocupar-me da parte em que os catalães têm razão. De como a «Revolta dos Ceifeiros» e a guerra que se lhe seguiu nos ajudou. Porque quando aqui dizemos que na Catalunha se ignora tudo o que a Portugal diz respeito, manda a verdade que se diga que, para a maioria dos portugueses, a Catalunha é uma província de Espanha. Ponto final. Vou, pois, em breves palavras, contar a quem não sabe, a história dessa sangrenta revolta, coisa que os meninos na Catalunha conhecem bem, mas de que a maioria dos portugueses nem sequer ouviu falar. Para pilotar a nossa máquina do tempo pela história da Catalunha adentro, pedi ajuda ao meu amigo Josep Anton Vidal. Este texto é da autoria de ambos. Vamos ver como as coisas ocorreram na Catalunha.

Em 1635, a França encetava a uma nova fase da guerra contra os reinos da Casa de Áustria, os Habsburgos, que dominavam grande parte da Europa, para além das colónias da América, de África e da Ásia. O sol nunca se punha na vasta parte do mundo dominada por Castela e essa grandeza sufocava a pretensão francesa de hegemonizar a Europa militar e economicamente. Era a chamada Guerra dos Trinta Anos que começara em 1618. No entanto, apesar da paz de Vestefália assinada em 1648, a guerra prosseguiria entre os dois estados até 1659, quando se assinou o tratado dos Pirenéus. Este prolongamento por mais doze anos da guerra dos Trinta Anos teve como cenário e motivo a Catalunha.
Por outro lado, esta guerra com a França veio evidenciar as fragilidades do gigante castelhano, minado pelo próprio gigantismo das suas estruturas e sobretudo pela corrupção que o afluxo de ouro e prata, proveniente da América, criando fortunas rápidas e fáceis e a quebra no valor dos metais preciosos, geraram uma crise profunda que o conde-duque de Olivares, chefe do governo, procurava enfrentar impondo medidas drásticas nos reinos submetidos. O astuto governante pusera em marcha uma política destinada a recuperar o esplendor da monarquia, ameaçado pela decadência, reforçando o poder do soberano nos reinos peninsulares e na Europa.

A carga fiscal aumentara em Castela e a sua política belicista, que o levou a envolver-se numa guerra pela hegemonia europeia, exigia uma repartição dessa carga fiscal e do esforço militar por todos os reinos da Península. Porém, a legalidade de cada reino constituía um obstáculo a essa política. Porque, quer Portugal, quer a Catalunha, Aragão ou Valência não tinham perdido formalmente a independência. O que acontecia era que o rei era o mesmo – o de Castela e imperador das Alemanhas. Em Portugal, desde Filipe I (II de Castela) havia o compromisso de respeitar os «foros e privilégios» do Reino.

Na Catalunha e outros reinos, acontecia o mesmo. Daí a urgência de unificar as leis e alinhar os direitos desses reinos pelos de Castela. No fundo o que Olivares pretendia era acabar com a independência teórica dos reinos que compunham o Império da Casa de Áustria, centralizar de uma vez por todas as decisões em Madrid. Já em 1625, em carta ao rei, o conde-duque dissera que o monarca não deveria contentar-se em ser rei de Portugal, Aragão e Valência, conde de Barcelona; deveria esforçar-se por «levar a esses reinos as maneiras, as leis e os costumes de Castela». Numa palavra, deveria aniquilar a independência formal, centralizar, castelhanizar. A Flandres aceitou essas medidas que impunham o recrutamento forçado de soldados para a guerra com a França. A Catalunha e Portugal recusaram liminarmente o agravamento dos impostos e o recrutamento adicional, plano de reestruturação militar a que Olivares chamou a «União de Armas».

Em suma, de um ponto de vista formal, não se tratava de recuperar a independência, pois quer Portugal, quer a Catalunha nunca a tinham perdido até então. Filipe I, fora dentro da linha sucessória, o herdeiro legítimo do trono de Portugal. O mesmo acontecera na Catalunha, onde os Áustria cingiam legitimamente a coroa condal. Olivares, porém queria alterar as regras do jogo e foi neste clima, em que as diversas legalidades colidiam com os interesses de Madrid e a sua supressão parecia inevitável, que os conflitos eclodiram.
Nas Cortes Catalãs de 1626, que o rei abandonou antes do encerramento e sem ter obtido qualquer acordo, as instituições recusaram as obrigações impostas pela União de Armas, neg
ando-se igualmente a aceitar exigências que colidiam com a legalidade catalã (Els Usatges). Voltou a fracassar a ofensiva de Olivares quando as Cortes foram reatadas em 1632. Nesta altura, Olivares recorreu a uma artimanha: tentou usar a legalidade catalã para a aniquilar: mercê do usatge “Princeps Namque”, era concedido ao conde de Barcelona (soberano do país), o direito de chamar às fileiras os súbditos em defesa do território. Porém as instituições catalãs mantinham a argumentação de que sendo essa potestade exclusivamente destinada à defesa do Principado da Catalunha, não era legítimo usar as forças assim constituídas para atacar outros territórios. Portanto, constituído um exército com recurso a essa lei, não podiam as tropas ser empregues noutro fim que não a defesa, nem podiam sair do território.

Este argumento levou Olivares a deitar mão a um estratagema militar para forçar o recrutamento dos catalães, desencadeando operações militares contra os franceses junto das fronteiras da Catalunha. Assim, em 1637,desencadeou a campanha de Leucata, no Languedoc francês. A campanha redundou num desastre para as tropas de Filipe IV (III da Catalunha e de Portugal). Embora as unidades catalãs se tenham recusado a abandonar o território, o grosso do exército de Olivares ocupara a Catalunha e, acabada a desastrosa campanha, permaneceu no país. A permanência do exército, obrigava ao «aboletamento», ou seja, a população civil era obrigada a acolher os soldados, proporcionando-lhes alojamento – sal, vinagre, fogo, cama, mesa e roupa lavada. Aqui acabava a obrigação legal – as demais despesas tinham de ser pagas pelos soldados. Porém, na prática, as coisas eram mais complicadas, pois não se estipulava durante quanto tempo tinham os civis de garantir o aboletamento, nem o número de militares que tinham de ser acolhidos em cada casa. Dado este vazio legal, os soldados impunham a lei com a arbitrariedade que se pode imaginar.

Os camponeses eram obrigados a cuidar e a alimentar as montadas e, inclusivamente, tinham de pôr à disposição do exército os seus próprios animais de montada e de tiro. Destas obrigações estavam dispensados os nobres, os clérigos e os cidadãos. Pelo que o peso recaía por inteiro sobre a população rural, fustigada pela precariedade das colheitas. O aboletamento vigorava desde 1626, mas a partir da campanha de Leucata a situação foi tornando-se cada vez mais insustentável.

Em Janeiro de 1640, Olivares quis agravar as obrigações do aboletamento, de modo que a população civil (e rural), assumisse também a manutenção da tropa, ou seja, os custos da sua alimentação e pagasse, sem direito a qualquer reembolso ou compensação, as despesas dos soldados. Esta situação de violência e abuso crescentes sobre a população, particularmente da rural, criou um clima de tensão que atingiu o clímax na Primavera de 1640 e levou à mobilização dos camponeses que se organizaram de acordo com as formas tradicionais de defesa (escaramuças, ataques de surpresa…) e constituíram um exército de populares que conseguiu expulsar as tropas de alguns territórios, empurrando-as para o Rossilhão. O levantamento atingiu Barcelona em Maio de 1640. Na capital, libertaram algumas autoridades, mandadas encarcerar pelo vice-rei, por terem encorajado à resistência contra o aboletamento. Foi neste contexto que eclodiu a sublevação do Corpus de Sang.

(Continua)

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