terça-feira, 17 de agosto de 2010

Novas Viagens na Minha Terra

Manuela Degerine

Capítulo LXXXI



Vigésima etapa: em Valença (continuação)

Jantámos afinal muito bem, graças à gentileza dos venezianos. Quando tentamos fazer um chá, evidentemente: o copo único encontra-se apreendido.

Conversamos – sem rancor – com o casal que se apoderou de nossa esperança de chá. Dois alemães, um senhor todo de preto vestido, com cinquenta e tal anos; e uma rapariga muito bonita. O senhor, quando percebe que falamos francês, exclama:

- Ah, finalmente: chegou a ocasião de eu falar francês!

Exprime-se num francês sem erros nem sotaque. Porém, como a rapariga não compreende a língua gálica, trocamos meia dúzia de frases e acabamos todos por falar inglês.

Neste albergue encontra-se igualmente uma família franco-germânica. O pai é alemão, a mãe é francesa, a filha, já adolescente, fala ambas as línguas dos pais. Esta família acompanhar-nos-á, daqui em diante, até Santiago de Compostela. Hoje pouco os vemos, pois encontram-se a descansar.

Também dorme aqui um senhor espanhol, com cerca de setenta anos, sem dúvida, cujos pés se encontram cobertos de bolhas infectadas. Quando escrevo a palavra bolhas, cumpre explicar que não se parecem com o que, nos meus pés, tenho designado como bolhas: as dimensões de um compeed não correspondem, nem de perto nem de longe, à extensão daquelas feridas. Aconselho que vá ao hospital. Ele replica que já percorreu diversas vezes o Camino Francés e que, sem esforço, não há mérito. Bem... Se a fé move montanhas, talvez cure até as infecções. Eu, que não tenho fé, antes de chegar a tal ponto, teria parado e tratado dos pés.

Perguntará o leitor... Onde ficou a multidão que nos ultrapassou na vertigem dos quatrocentos e cinco metros de altitude? Pois: em S. Roque. Ou em Rubiães. E os que escalaram ontem os mesmos píncaros seguiram, quase todos, para Tui.

Pernoitando em Valença fizemos a opção não só necessária mas também conveniente: talvez, à hora a que chegámos, o albergue de Tui estivesse completo.

Hoje deito-me cedo. E, embora me pareça que dormi pouco pois, a princípio, o meu coração palpitava e precisei de algum tempo para adormecer, embora me pareça ter sentido frio durante toda a noite – dormi na realidade bem.

Levanto-me, como cumpre, às seis horas. O tempo continua húmido: não encontro a roupa mais enxuta do que quando a pendurei, ontem à noite, no estendal. Visto portanto as calças e a camisola molhadas; as peúgas secaram, ontem à noite, nos meus pés. Que arrepio... Felizmente dura poucos segundos. Quando chegarmos ao campo, pendurarei o resto na mochila: secará ao sol.

Aproveitando a partida dos Alemães Elegantes, que de novo se anteciparam, conseguimos açambarcar o copo único, bebemos portanto o chá à vez (e comemos um pouco de pão com nozes), antes de visitarmos Valença e tomarmos o pequeno-almoço. A família franco-germânica espera pelo copo – tento ser rápida porém, para haver chá, a água quente precisa de agir três minutos, depois convém não me queimar. Quando, por fim, acabo de beber, com a língua um pouco escaldada, passo o copo ao Sérgio – que também escalda a boca.

Os italianos despedem-se. Depois de saírem noto, em cima da mesa, uns rolos minúsculos de plástico – o que é isto? Dois sacos de supermercado dobrados de maneira muito especial: são origamis. Que minúcia no modo de dobrar os plásticos... Nunca vi nada assim.

- De quem serão?...

- De quem hão-se ser? Da minha compatriota: evidentemente!

Oiço algo como uma irritação no meu plácido companheiro de viagem. A veneziana não se enganou: o único lugar à face da Terra onde estes dois se podem tratar por tu deve ser o Caminho de Santiago.

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