Manuela Degerine
Capítulo LXXXVI
Vigésima primeira etapa: de Valença ao Porrinho (continuação III)
Após a área de descanso de Orbenlle, chegamos à zona industrial. O meu roteiro, que só conta a linha recta, indica uma travessia de três quilómetros, mas outros guias assinalam seis – a mim pareceram-me dez. Vai até ao Porrinho: fábricas e camiões. Caminhamos à direita, numa orla que não é passeio, embora se situe acima da estrada; a frequência das passagens desenhou um carreiro por entre as ervas. Com se não bastasse, começou a chover com força e o vento, mais o deslocamento de ar causado pelos camiões, tornam a caminhada difícil, para além de desagradável. Há o barulho dos camiões que, não raro, apitam, quando nos vêem; para nos ouvirmos, temos que gritar. Há o ar poluído. Há o risco que a proximidade de tantos camiões sempre implica. Passamos por fim, numa ponte metálica, por cima da linha dos comboios, caminhamos por debaixo de um viaduto...
Aqui... O nosso Gérard achando, com muita razão, o ambiente soturno, dá-nos um ar da sua graça. Não resisto à tradução integral da gerárdica prosa.
Neste restaurante sem pretensões, nota-se que os clientes são conhecidos. Não há ementa, prato do dia para todos, apenas as toalhas de oleado são, em cada mesa, todas diferentes. Hoje servem uns filetes de peixe a boiar no molho com azeite, cebola e pimento, tudo assado num prato de barro; salada mista (alface, tomate e cebola); várias fatias de uma carne demasiado cozida num molho condimentado, acompanhadas com batatas que, por seu lado, se apresentam pouco fritas; para a sobremesa um pudim em recipiente de plástico; tudo regado com uma garrafa de bom vinho galego: uma refeição divina. Chegado ao café, quando peço a adição, o dono, que já tem idade, faz um gesto significando: “tem calma”.
Dez linhas e meia sobre o café Stop. O caro Gérard Rousse não é francês, é uma caricatura de francês: se fala de comida, ganha corpo e humor. Rimo-nos ao ponto de, com a ajuda da chuva, que nos torna pitosgas, acabarmos por não ver o celebrado café Stop. Caminhamos agora à beira de uma estrada com muito movimento, algumas casas rurais, um bocado de horta, vestígios de outra época, frequentes edifícios industriais, stands de automóveis, diversos cafés e restaurantes. Acabamos enfim por virar na direcção do centro. Perdemos as setas do Caminho e Gérard, tão prolixo no café Stop, despacha-nos com “ a seguir” e “mais adiante”. Seguimos em frente, pela rua principal, situando, de maneira incerta, onde nos encontramos.
No primeiro supermercado, compro chapata tradicional, um pão excelente, queijo artesanal, maçãs e bananas. Inquirimos onde fica o albergue dos peregrinos. Devemos prosseguir pela mesma rua. Continua a chover... Atravessamos a linha do comboio. Chegamos por fim ao albergue.
A família franco-germânica continua prostrada nos beliches. E também encontramos o senhor espanhol; cujos pés não vão pior.
Os meus aliás também não. Hoje não me doem e, quando me descalço, não encontro bolhas novas, parece-me até que as outras começam a sarar...
A roupa molhada, que tiro da mochila, cheira mal. Deve começar a apodrecer ou algo de semalhante. Que fazer? Opto por voltar a lavá-la para a vestir amanhã, mesmo molhada; e arrumo a que hoje sujei, esperando que, em breve, a possa lavar e secar. Porém, depois de lavar a roupa que lavei ontem e não cheguei a vestir, noto que continua a cheirar mal. Ensaboo segunda vez e passo por água abundante. O cheiro persiste. Que fazer?
Maria, que tem experiência neste tipo de viagens, responderia à minha pergunta. (Por onde andará ela?)
Bem... Talvez o mau cheiro passe quando a roupa secar.
Vou carimbar a credencial, pago 5 euros, recebo um lençol e uma fronha em fibra sintética – uma solução higiénica.
A alberguista explica-me o que são callos á galega – um parente das tripas à moda do Porto e da dobrada com feijão. A receita que ela me mostra na Internet leva grão; dou-me conta de, acaso por a ortografia ser diferente da portuguesa, não compreender tudo.
O albergue tem chão de xisto: muito bonito e de fácil limpeza. E a cozinha, sem oferecer grande variedade de utensílios, permite fazer um chá e poisar a comida num prato – o mais importante. A senhora que faz a limpeza tem a paciência de me explicar – duas vezes – o uso da vitrocerâmica.
Depois do jantar damos um passeio pelo centro do Porrinho. Vê-se que foi uma cidade bonita, restam alguns edifícios, os paços do concelho, várias capelas, uma praça, uma ruela... O resto não é feio: um normal complemento urbano da zona industrial. Há nesta cidade um ambiente que me encanta sem poder explicá-lo; algo como uma saudade. Percorro as ruas pensando que haverá, por detrás destas janelas, que vejo iluminadas, alguns galegos com quem gostaria de falar, que me contariam o Porrinho de agora, se não também o de antes, me falariam da cultura galega, me diriam, não em castelhano, o que é viver aqui no ano de 2010. O turista, peregrino ou não, é alguém que anda por fora; como Eça de Queirós sublinha numa carta. (Há lugares em que me é indiferente, mas aqui preferia andar por dentro.)
domingo, 22 de agosto de 2010
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Porrinho, e as suas fábricas, uma delas de rações para animais que pertencia a uma empresa onde eu trabalhava aqui em Portugal.Fui lá alguma vezes a caminho da Corunha, sede da empresa.
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