sexta-feira, 6 de agosto de 2010

O sofá de pedra



Marcos Cruz

A história que vos vou contar podia sair-me das mãos numa rajada, mas eu não nasci para ir directo aos assuntos. Percebi isso quando perdi a virgindade. Foi estranho. Os meus amigos tinham-me pressionado tanto a invadir a minha namorada que, na hora h, parecia que o meu pénis ia às finanças. Claro que ejaculei precocemente. O que vale é que não culpei o acto em si, culpei-o em mim, isto é, compreendi que sem sol não se faz praia, que cada prazer pede o seu clima. Com essa namorada, porém, o destino estava escrito. Como Deus, quando fecha uma porta, abre uma janela, o mesmo destino quis que, antes de conhecer a minha terceira namorada (e não a segunda porque à segunda nem as mamas lhe apalpei, apesar de ter andado dois meses com ela), eu descobrisse um sítio mágico, hoje dir-se-ia um spot, numa zona rochosa da praia de Cabedelo, para lá do Hotel Casa Branca, quem vem do Porto. Era um calhau talhado pela bravura do mar em forma de sofá ou chaise longue, um presente romântico do grande arquitecto para a minha pequena pessoa, como a lembrar-me de que nem tudo estava perdido. Reconheci logo ali um potencial extraordinário. E, assim que pude, numa noite cravejada de estrelas, levei lá a rapariga que, entretanto, me entrara pelos olhos. A conversa, a brisa costeira, a aura de altar impossível, com um véu lunar a sair-nos dos pés, na incerteza da água, para um horizonte também ele indefinido, mistificaram o beijo que acabaríamos por dar, certos de que haveria de ser o primeiro de muitos, como foi, e certos de que haveríamos de ser os últimos um do outro, como não fomos, nem sequer naquele sofá.


Se é verdade que os casos de amor deixam sempre marca, a rocha ergonómica nunca se viu beliscada - também, quem é que ia beliscar uma rocha… - na sua infalibilidade como acendalha da mais crepitante das ilusões. Pelo tempo fora, tive ali a boca de cena perfeita para o ritual iniciático da paixão, uma espécie de zona (pouco) franca entre o divã e o confessionário, onde me encontrava sempre com cada nova mais-que-tudo, como num casting mútuo, de olhos apontados ao filme mais estrelado, a passar desde o princípio das noites na tela infinita. Um dia, ao cabo de muitos anos, dei-me conta de que a marginal de Gaia estava a ser substancialmente alterada, para que o usufruto de toda a linha de praia ganhasse qualidade, quer na perspectiva de quem passa, de carro ou a pé, pois a proposta era melhorar as estradas e construir um percurso pedonal de madeira até Espinho, quer na de quem fica, uma vez que iria ser ampliada a oferta de bares e esplanadas. Eu, claro que afastei essas promessas como quem abre as cortinas do quarto à espera de que o dia não esteja chuvoso e fui, disparado, procurar o calhau, mas, depois de umas voltas para trás e para a frente, não vislumbrei sequer o meu ponto de referência, que era uma curva, uma curva que já era, pelos vistos. Fiz uma espécie de varrimento emocional, que é como quem diz um apelo à memória afectiva para vestir a pele de detective, e corri as áreas rochosas, saltando de pedra em pedra, sem, contudo, descortinar o paradeiro do sofá. Se, por um lado, se me afigurava impossível, criminoso até, alguém ter removido dali o ex-libris costeiro do Grande Porto, por outro eu era obrigado a reconhecer que mais ninguém, além de mim, lhe atribuía esse estatuto, donde a minha frustração tinha uma raiz essencialmente egoísta. Voltei lá depois disso, em ocasiões dispersas, só para confirmar o desaparecimento, e ainda hoje, devo confessar, há um cantinho de mim que não se dá por convencido. Mas é mera teimosia. Afinal, a mulher com quem vivo, o amor da minha vida, nunca se sentou naquele sofá. Foi a primeira e única, como se, fechando a porta dos enganos, Deus me tivesse aberto, enfim, a janela da verdade. Por isso, acho que está na hora de pôr uma pedra sobre o assunto. 




(Ilustração de Adão Cruz)

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