segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Os processos de globalização (8) - Boaventura Sousa Santos

8. A globalização hegemónica e o pós-Consenso de Washington


Distinguir entre globalização hegemónica e globalização contra-hegemónica implica pressupor a coerência interna de cada uma delas. Trata-se, no entanto, de um pressuposto problemático, pelo menos no actual período de transição em que nos encontramos. Já assinalei que a globalização contra-hegemónica, ainda que reconduzível a dois modos de produção de globalização - o cosmopolitismo e o património comum da humanidade -, é internamente muito fragmentada na medida em que assume predominantemente a forma de iniciativas locais de resistência à globalização hegemónica. Tais iniciativas estão enraizadas no espírito do lugar, na especificidade dos contextos, dos actores e dos horizontes de vida localmente constituídos. Não falam a linguagem da globalização e nem sequer linguagens globalmente inteligíveis. O que faz delas globalização contra-hegemónica é, por um lado, a sua proliferação um pouco por toda a parte enquanto respostas locais a pressões globais - o local é produzido globalmente - e, por outro lado, as articulações translocais que é possível estabelecer entre elas ou entre elas e organizações e movimentos transnacionais que partilham pelo menos parte dos seus objectivos.





Estas características gerais não vigoram, no entanto, de modo homogéneo em todo o planeta. Pelo contrário, articulam-se de modo diferenciado com diferentes condições nacionais e locais, sejam elas a trajectória histórica do capitalismo nacional; a estrutura de classes; o nível de desenvolvimento tecnológico; o grau de institucionalização dos conflitos sociais e, sobretudo, dos conflitos capital/trabalho; os sistemas de formação e qualificação da força de trabalho; as redes de instituições públicas que asseguram um tipo concreto de articulação entre a política e a economia. No que respeita especificamente a estas últimas, a nova economia institucional (North, 1990; Reis, 1998) tem vindo a salientar o papel central da ordem constitucional, o conjunto de instituições e de compromissos institucionalizados que asseguram os mecanismos de resolução de conflitos, os níveis de tolerância ante as desigualdades e os desequilíbrios, e, em geral, definem o que é preferível, permitido ou proibido (Boyer, 1998: 12). Cada ordem constitucional tem a sua própria historicidade e é ela que determina a especificidade da resposta local ou nacional às mesmas pressões globais. Esta especificidade faz com que, em termos de relações sociais e institucionais, não haja um só capitalismo mas vários.



O capitalismo, enquanto modo de produção, tem assim evoluído historicamente em diferentes famílias de trajectórias. Boyer distingue quatro dessas trajectórias as quais constituem as quatro configurações principais do capitalismo contemporâneo: o capitalismo mercantil dos EUA, Inglaterra, Canadá, Nova Zelândia e Austrália; o capitalismo mesocorporativo do Japão; o capitalismo social democrático da Suécia, Áustria, Finlândia, Noruega e Dinamarca, e, em menor grau, Alemanha; o capitalismo estatal da França, Itália e Espanha (Boyer, 1996, 1998). Esta tipologia restringe-se às economias dos países centrais, ficando, pois, fora dela a maioria dos capitalismos reais da Ásia, da América Latina, da Europa Central, do Sul e de Leste e da África. A sua utilidade reside em mostrar a variedade das formas de capitalismo e o modo diferenciado como cada uma delas se insere nas transformações globais.



No capitalismo mercantil o mercado é a instituição central; as suas insuficiências são supridas por agências de regulação; o interesse individual e a competição dominam todas as esferas da sociedade; as relações sociais, de mercado e de trabalho, são reguladas pelo direito privado; os mercados de trabalho são extremamente flexíveis; é dada toda a prioridade à inovação tecnológica promovida por diferentes tipos de incentivos e protegida pelo direito de patentes e de propriedade intelectual; são toleradas grandes desigualdades sociais bem como o subinvestimento em bens públicos ou de consumo colectivo (transportes públicos, educação, saúde, etc.). O capitalismo mesocorporativo japonês é liderado pela grande empresa; é no seio desta que se obtêm os ajustamentos económicos principais através dos bancos que detêm e da rede de empresas afiliadas que controlam; a regulação pública actua em estreita coordenação com as grandes empresas; dualidade entre os trabalhadores "regulares" e os trabalhadores "irregulares", sendo a linha divisória a entrada ou não na carreira estruturada no interior do mercado interno da grande empresa; são altos os níveis de educação generalista e a formação profissional é fornecida pelas empresas; aceita-se a estabilidade das desigualdades. O capitalismo social-democrático assenta na concertação social entre os parceiros sociais, as organizações representativas dos patrões e dos trabalhadores e o Estado; compromissos mutuamente vantajosos que garantam a compatibilidade entre ganhos de competitividade, inovação e produtividade, por um lado, e ganhos salariais e melhoria do nível de vida, por outro; prevalência da justiça social; alto investimento em educação; organização do mercado de trabalho de modo a minimizar a flexibilidade e a promover a qualificação como resposta ao aumento da competitividade e à inovação tecnológica; elevada protecção social contra os riscos; minimização das desigualdades sociais.



Finalmente, o capitalismo estatal assenta na centralidade da intervenção estatal como princípio de coordenação em face da fraqueza da ideologia do mercado e das organizações dos parceiros sociais; sistema público de educação para a produção de elites empresariais públicas e privadas; fraca formação profissional; mercado de trabalho altamente regulado; investigação científica pública com deficiente articulação com o sector privado; elevada protecção social. Apesar de Portugal continuar a ser uma sociedade semiperiférica, a institucionalidade capitalista que domina entre nós aponta para o tipo de capitalismo estatal. A plena consolidação deste modelo de institucionalidade parece estar bloqueada no nosso país, pelas pressões contraditórias, ainda que desiguais, de que o modelo é alvo e que, por paradoxal que pareça, são exercidas pelo próprio Estado: por um lado, as pressões no sentido do capitalismo social democrático e, por outro lado, as pressões bem mais fortes no sentido do capitalismo mercantil. Neste caótico processo de transição há ainda vestígios de capitalismo mesocorporativo, sobretudo em face da articulação íntima entre o Estado e os grupos financeiros e entre o Estado e grandes empresas públicas e privadas em fase de internacionalização.



Em face da coexistência destes quatro grandes tipos de capitalismo (e certamente de outros tipos em vigor nas regiões do mundo não integradas na classificação), pode questionar-se a existência de uma globalização económica hegemónica. Afinal, cada um destes tipos de capitalismo constitui um regime de acumulação e um modo de regulação dotados de estabilidade, em que é grande a complementaridade e a compatibilidade entre as instituições. Por esta via, o tecido institucional tem uma capacidade antecipatória ante possíveis ameaças desestruturantes. A verdade, porém, é que os regimes de acumulação e os modos de regulação são entidades históricas dinâmicas; aos períodos de estabilidade seguem-se períodos de desestabilização, por vezes induzidos pelos próprios êxitos anteriores. Ora desde a década de oitenta, temos vindo a assistir a uma enorme turbulência nesses diferentes tipos de capitalismo. A turbulência não é, porém, caótica e nela podemos detectar algumas linhas de força. São essas linhas de força que compõem o carácter hegemónico da globalização económica.



Em geral, e nos termos da definição de globalização acima proposta, pode dizer-se que a evolução consiste na globalização do capitalismo mercantil e na consequente localização dos capitalismos mesocorporativos, social democrático e estatal. Localização implica desestruturação e adaptação. As linhas de força por que uma e outra se têm pautado são as seguintes: os compromissos entre o capital e o trabalho são vulnerabilizados pela nova inserção na economia internacional (mercados livres e procura global de investimentos directos); a segurança da relação social é convertida em rigidez da relação salarial; a prioridade dada aos mercados financeiros bloqueia a distribuição de rendimentos e exige a redução das despesas públicas em material social; a transformação do trabalho num recurso global é feita de modo a coexistir com a diferenciação de salários e de preços; o aumento da mobilidade do capital faz com que a fiscalidade passe a incidir sobre rendimentos imóveis (sobretudo os do trabalho); o papel redistributivo das políticas sociais decresce e, em consequência, aumentam as desigualdades sociais; a protecção social é sujeita a uma pressão privatizante, sobretudo no domínio das pensões de reforma dado o interesse nelas por parte dos mercados financeiros; a actividade estatal intensifica-se, mas agora no sentido de incentivar o investimento, as inovações e as exportações; o sector empresarial do Estado, quando não é totalmente eliminado, é fortemente reduzido; a pauperização dos grupos sociais vulneráveis e a acentuação das desigualdades sociais são consideradas efeitos inevitáveis da prosperidade da economia e podem ser minoradas por medidas compensatórias desde que estas não perturbem o funcionamento dos mecanismos de mercado.



É este o perfil da globalização hegemónica, sobretudo económica e política. A sua identificação tem a ver com as escalas de análise. Ao nível da grande escala (a análise que cobre uma pequena área em grande detalhe), tal hegemonia é dificilmente detectável na medida em que a esta escala sobressaem sobretudo as particularidades nacionais e locais e as especificidades das respostas, resistências e adaptações a pressões externas. Pelo contrário, ao nível da pequena escala (a análise que cobre grandes áreas, mas com pouco detalhe), só são visíveis as grandes tendências globalizantes e a tal ponto que a diferenciação nacional ou regional do seu impacto e as resistências que lhe são movidas são negligenciadas. É a este nível de análise que se colocam os autores para quem a globalização é um fenómeno sem precedentes, tanto na sua estrutura, como na sua intensidade. Também para eles é inadequado falar de globalização hegemónica, pois, como referi acima, havendo uma só globalização inelutável, faz pouco sentido falar de hegemonia e, ainda menos, de contra-hegemonia. É ao nível da escala média que se torna possível identificar fenómenos globais hegemónicos que, por um lado, se articulam de múltiplas formas com condições locais, nacionais e regionais e que, por outro lado, são confrontados com resistências locais nacionais e globais que se podem caracterizar como contra-hegemónicas.



A escolha dos níveis de escala é assim crucial e pode ser determinada tanto por razões analíticas como por razões de estratégia política ou ainda por uma combinação entre elas. Por exemplo, para visualizar os conflitos entre os grandes motores do capitalismo global tem-se considerado adequado escolher uma escala de análise que distingue três grandes blocos regionais interligados por múltiplas interdependências e rivalidades: o bloco americano, o europeu e o japonês (Stallings e Streeck, 1995; Castells, 1996: 108). Cada um destes blocos tem um centro, os EUA a União Europeia e o Japão, respectivamente, uma semiperiferia e uma periferia. Ao nível desta escala, os dois tipos de capitalismo europeu acima referidos, o social-democrático e o estatal, aparecem fundidos num só. De facto, a União Europeia tem hoje uma política económica interna e internacional e é sob o seu nome que os diferentes capitalismos europeus travam as suas batalhas com o capitalismo norte-americano nos fora internacionais, nomeadamente na Organização Mundial do Comércio.



A escala média de análise é, pois, aquela que permite esclarecer melhor os conflitos e as lutas sociais que se travam à escala mundial e as articulações entre as suas dimensões locais, nacionais e globais. É também ela que permite identificar fracturas no seio da hegemonia. As linhas de força, que acima referi como sendo o núcleo da globalização hegemónica, traduzem-se em diferentes constelações institucionais, económicas, sociais, políticas e culturais ao articular-se com cada um dos quatro tipos de capitalismo ou com cada um dos três blocos regionais. Essas fracturas são hoje muitas vezes o ponto de entrada para lutas sociais locais-globais de orientação anticapitalista e contra-hegemónica.



As clivagens entre o capitalismo mercantil e o capitalismo social-democrático ou estatal, entre o modelo neoliberal de segurança social e o modelo social europeu ou ainda dentro do modelo neoliberal, ao mesmo tempo que revelam as fracturas no interior da globalização hegemónica criam o impulso para a formulação de novas sínteses entre as clivagens e com elas para a reconstituição da hegemonia. É assim que deve ser entendida a "terceira via" teorizada por Giddens (1999).

Os textos são transcritos , com a devida vénia, da Revista Crítica de Ciências Sociais


© Boaventura de Sousa Santos

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