Carlos Loures
Há vinte anos, em 1990, estava envolvido num projecto editorial, cuja direcção científica era conduzida pelo Professor Luís de Albuquerque, professor catedrático da Universidade de Coimbra, doutor honoris causa pela de Lisboa, figura cimeira na investigação histórica do período dos Descobrimentos, enfim, um grande intelectual, um cidadão exemplar e um homem bom. Foram três anos de convívio intenso, com reuniões todas as quartas-feiras pela manhã, Combinávamos o início do trabalho para as sete da manhã, pois o professor tinha reunião, salvo erro no Palácio Vale Flor, às 9:30 e às 9:15 em ponto vinha um motorista para o transportar. Chegávamos ambos mais cedo, seis e meia, sete menos um quarto. De noite ainda, nos meses de Inverno. Se eu chegava, por exemplo, às sete menos vinte e ele já estava na entrada à minha espera, era recebido com um chocarreiro: -«Então isto é que são horas?»
Nesse ano de 1990, publiquei um livro de poemas «O Cárcere e o Prado Luminoso» e, naturalmente, ofereci-lhe um exemplar dedicado. Era com um longo Poema ecologista (podendo também servir de prefácio) que abria a colectânea. Ironicamente 8tentando adoptar o ponto de vista do capitalismo), punha em causa a existência do poeta como elemento útil e acabava propondo que fosse reconvertido e transformado em copyrighter. . Pois Luís de Albuquerque escreveu uma réplica a este poema que hoje vos apresento. Guardo ciosamente o original escrito pelo punho do Professor e hoje compartilho convosco a leitura desse texto. Luís de Albuquerque, em plena actividade, presidindo à Comissão Nacional para a Comemoração dos Descobrimentos, foi ceifado por um acidente cardiovascular e faleceu em Janeiro de 1992. Aqui vos deixo a parte inicial do meu poema e, em baixo, o valioso «contraditório» de Luís de Albuquerque., do qual tenho muita saudade.
Poema ecologista
Vítima de uma certa e cruel
forma de poluição,
de um desgaste acelerado
dos meios naturais,
tal como o bisonte, o castor,
o lince, a cabra selvagem,
o poeta é hoje
um bicho ameaçado de extinção.
A destruição indiscriminada
de elementos essenciais
ao equilíbrio da vida,
a água contaminada, a voragem
que destrói a floresta,
a natureza consumida,
põem em perigo
a existência de muitos animais.
O poeta não se extingue porém
com a dramática violência
da baleia: a fúria utilitária
que se apossou das sociedades,
a súbita transformação
dos cafés em bancos comerciais,
roubaram-lhe o habitat
e ameaçam-lhe a sobrevivência.
Não flutua morto como o peixe
na albufeira da barragem,
entre o pneu velho, o preservativo,
a embalagem perdida,
as garrafas de plástico,
os detritos industriais:
não obedecendo já ao mote,
busca o spot, a «mensagem»
que ajude o pesticida
a matar o peixe e a vender mais
a margarina,
a «promover» o cancerígeno sumo:
aparece uma manhã a boiar
na secretária da agência,
morto heroicamente
ao serviço do consumo.
E a resposta de Luís de Albuquerque.
Não meu Amigo
O poeta não está em vias de extinção.
O lince, o castor, a foca, o homem
não vão resistir
ao fumo fétido das celuloses
suecas,
aos rios contaminados dos detritos das celuloses
suecas,
aos verdes plásticos
que alastram por prados artificiais,
ao crude.
que faz todo o mar negro, negro.
Mas salvam-se as cabras de Cabo Verde
que se riem dos plásticos
e comem-nos.
E com elas salvam-se os poetas
que sabem viver a angústia
de não haver mais amigos nos cafés, nos jardins, na noite,
e são capazes de fazer poemas de tudo,
mesmo dos plásticos.
E a poesia, meu amigo,
não é nada um péssimo produto;
é o único produto
que anda por aí
e não se adultera.
Para a poesia não é necessária a inspecção,
nem a defesa do consumidor.
Cada um consome a poesia que quer
e se ninguém a quer
a poesia morre e não deixa despojos deletérios.
Por isso,
Os poetas não são bichos em extinção
enquanto a poesia circular,
mesmo que seja em meios pútridos,
enquanto houver alguém que a sorva
como sorve o ar ignorado
de cada manhã irrepetível.
Luís de Albuquerque
1990.04.05
sábado, 28 de agosto de 2010
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Maravilha! É bem verdade a poesia resiste.
ResponderEliminar"Ambos os dois" como dizem na minha terra, muito bonitos. São poemas, no entanto, que eu gostaria mais de ver corridos, não em verso. Desculpa a opinião.
ResponderEliminarTens razão, Adão, talvez devesse ter escrito um texto e não um poema. Aliás, aproveito para declarar (completamente sóbrio e na posse plena das minhas faculdades mentais - é assim que bêbedos e malucos costumam abrir os discursos)que, apesar das colectâneas que publiquei, nunca me considerei verdadeiramente um poeta. Escrevia versos porque na altura era a maneira das coisas mais ácidas passarem. Os censores, quase sempre coronéis da cavalaria na reserva, quando viam «coisas às escadinhas» - o termo é de um censor - não liam. Aquilo a que se pode chamar a minha poesia, mais não foi do que arma de arremesso. Tenho dito. Hip (soluço).
ResponderEliminarEstás a ver tudo é poesia, se "a tanto nos ajudar o engenho e a arte". Eu também acho que as "escadinhas" não são necessárias para a poesia. Há textos que são pesia pura. Tu e o Adão e o Marcos, para só falar destes já o demonstraram. Ah! e o da Augusta, aquele primeiro, é um soneto belíssimo em forma de prosa. Isto não nos pode levar a um conceito de poesia, a uma tentativa de classificação?
ResponderEliminarTudo é poesia"se a tanto nos ajudar o engenho e a arte". Pois. O engenho e arte é que, as mais das vezes, estão ausentes. Eu diria, sem qualquer direito de o dizer (entenda-se) que muito mais de 99% do que se escreve "às escadinhas", poderá rimar, ritmar, ser bonito... mas não é poesia. Voluntariamente, retirei a minha produção como candidata. Espero que a nossa maratona, com definições múltiplas - de Aristóteles à Sophia, nos permita ter uma aproximação a um conceito de poesia que, mais ou menos, todos aceitemos.
ResponderEliminar