sábado, 28 de agosto de 2010

Poesia. Mais um sopro na fogueira

Adão Cruz

(Mais uma achega ao texto de Carlos Loures)


Eu penso que a poesia é algo de muito subtil, uma espécie de brisa mágica, uma essencialidade rítmica e harmoniosa da vida, quase uma ascese ética e estética que nos transporta à mais nobre e sublime expressão da realidade, através das mais impressivas, expressivas e sugestivas formas da nossa linguagem. Ela combina a palavra justa com toda a energia sinestésica e sensível que faz o poema acordar ou deflagrar. A poesia não é a cópia da realidade, mas a simbolização, a evocação e a invocação da beleza e da nobreza da realidade. O fenómeno poético é entendido como harmonia verbal em que todos os materiais fonéticos e simbólicos se diluem num resultado de suprema fruição estética. Por isso eu tenho vindo a dizer que criar poesia não é encastelar versos, uns em cima outros em baixo, versos brancos ou escuros, fazer rebuscadas rimas, escrever labirínticas coisas que ninguém entende, inventar modas que não passam, muitas vezes, de execuções sumárias da poesia. O chamado poema, considerado a matriz literária habitual onde se revela a poesia, pode ser absolutamente estéril, ou mesmo a negação da poesia. A poesia percorre transversalmente qualquer forma de expressão artística, podendo ter uma presença mais viva num texto em prosa do que num poema, ou ser muito mais sentida num quadro ou numa peça de música do que em qualquer forma de expressão literária. Por isso se costuma chamar ao poema a poesia falada, à pintura a poesia calada e à música a poesia cantada.

Quando eu digo que aquilo que andamos aqui a fazer, pouco tem a ver com poesia, estou consciente do que digo. Na verdade, apenas tentamos, como garimpeiros, pesquisadores de ouro, encontrar a nossa pepita, o nosso momento de tocar as franjas do vestido da poesia, sempre tão volátil e tão pouco à mão. Mas é absolutamente necessário saber o que é uma pepita de ouro, senão nunca a encontraremos. O facto de não conseguirmos facilmente criar a poesia não significa que não saibamos onde ela está. Não significa que não a sintamos. Não significa que não tenhamos o sentimento poético, isto é, a resultante emocional que permite a construção do complexo neuronal do sentimento poético, que nada tem a ver com sentimentalismo, tantas vezes despido de qualquer centelha de poesia. A nossa grande aprendizagem está, precisamente, em chegarmos ao reconhecimento, por um lado, da raridade dos momentos poéticos que vamos conseguindo, e por outro, de sentir e ter a certeza de que são de facto poéticos esses momentos. Se não tivermos a lucidez, a consciência e a capacidade crítica necessárias à autenticação do nosso sentimento poético, relativo é certo, mais vale deixarmos de escrever e de procurar a poesia.

Para sossego do nosso desassossego, não nos iludamos ao pensar que os considerados grandes poetas sempre criaram boa e bela poesia. Ou que os grandes músicos e pintores sempre criaram obras-primas. Sem dúvida que a fasquia a que elevaram o sua escala do belo e do sublime não é atingível por muitos mortais, mas nem tudo o que criaram merece a nossa admiração. Fazer a nivelação automática, acrítica ou decorrente dos mais diversos interesses das obras de um poeta ou de um artista pelo que de melhor ele criou é um embuste. Fui amigo pessoal de Eugénio de Andrade. Lembro-me de um dia lhe ter dito que a par dos mais belos poemas que ele fez, e que foram dos mais belos que já li, havia outros que pouco me diziam em termos de sensibilidade poética, a tal brisa mágica que, quase sem darmos por ela, se aninha a um canto da nossa alma.

Outro erro, em minha opinião, é pretender que o sentimento poético chegue às pessoas por artes mágicas. Dito por outras palavras, pretender levar às pessoas a poesia como se de uma prenda se tratasse.

Dizia Schiller que o vulgar é tudo aquilo que não desperta outro interesse que não seja o sensível. A arte e a poesia não devem descer ao puramente sensível, à mera receptividade sensorial, à fugaz captação de estímulos incapazes de serem trabalhados condignamente nas complexas oficinas neuronais. Não deve ser levada compulsivamente ao povo impreparado, sobretudo de forma massificada, sem que haja uma estrutura cultural produtiva que lhe permita introduzi-la nas suas vidas de forma edificante e vivencialmente estruturante. Não é a arte que tem de ir ao povo mas o povo que tem de vir à arte. No seio do povo devem ser criadas, através de uma política cultural autêntica, todas as condições que lhe permitam sentir a necessidade da arte e da sua procura, como elemento essencial da sua vida. Confesso que é uma questão controversa. Aqui fica esta deixa para uma eventual discussão.

5 comentários:

  1. Meu caro Adão, lúcido e preparado cá estás novamente a falar sobre assuntos a que nem todos chegam. Dizia um poeta (não sei qual.O professor que me ensinou a gostar de poesia dizia que bão vale a pena saber a vida deles, basta conhecer a poesia) que " a primeira estrofe é dada (aparece, expontâneamenet) ao poeta, todas as outras dão muito trabalho. A inspiração é a centelha, essa capacidade única de dar vida e beleza às palavras, à música, ao quadro...o talento de que falei há dias aqui no estrolabio.

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  2. È uma excelente e inteligente reflexão, meu caro Adão. Não concordo com todas as conclusões que retiras da exposição que fazes, mas, mesmo com o que não concordo, acho que está muito bem argumentado. Não conhecia esse texto do Schiller, mas ainda hoje (ao trabalhar para a maratona) me passaram sob os olhos palavras de Goethe lamentando as cedências que alguns poetas fazem ao gosto do público, o que vai um pouco no sentido das tuas palavras - «Não é a arte que tem de ir ao povo mas o povo que tem de vir à arte». Tens razão, mas é um processo complicado. Vê só - os governos são a emanação da vontade popular. E aqui entra-se numa pescadinha de rabo an boca: um povo em cujas universidades (de onde saem os futuros dirigentes) se convidam o Quim barreiros, o Emanuel ou o Malhoa para as festas de curso, queimas de fitas e assim, vota sempre em políticos que, saíram dessas universidades, e para os quais, o Mariazinha deixa-me ir à cozinha equivale ao "A Elise", ou o Emanuel pode perfeitamente substituir os concertos para violino do Chopin... Como é que um povo assim governado por gente que despreza a arte (ou a teme) pode chegar à arte?

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  3. Nas universidades não entra a cultura, entra o conhecimento e é pouco. Uma das questões que devia ser discutida é a seguinte : ênfase na matemática, inglês e e ciências naturais (preparando o aluno para saberes úteis" ao mercado de trabalho ou, nas primeiras fases da vida académica, dar ênfase às humanisticas, lançando as bases de uma cultura basta, humus, de onde se parte depois para os conhecimentos práticos? O aluno cá no burgo tem treze disciplinas, dá cabo da coluna com o peso da mochila e não sabe nem carne nem peixe.

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  4. Aí aparecem as frases de poemas em pacotes de café, ou as outras que se passeiam nos autocarros, embalagens de pão de padaria que falem porque cobram mais caro o pão. Intenções generosas de quem se revê na arte. E os poetas que musicam canções, porque através da melodia se interioriza o poema. A poesia não carece de ser entendida, nem de ser sequer interpretada. A poesia é sentida, como foi sentido o acto da escrita. Se me perguntam o que foi entendeste com aquele poema, indignada respondo que não o entendi, senti!
    A poesia é esse amor que ora se escapa e ora te abraça, o encontro que sonhas desde criança. E se o silêncio te encontra a caminho, és tu o poema. Não pergunto se entendo fulano, pouco importa, pois se simpatizo com ele, sorrio. E nesse sorriso me entendo. Se o poema me toca, todo meu corpo vibra a contento, e nele me entendo. Quando escrevo, com ou sem febre procuro o caminho que me leva a esse transe.

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  5. Infelizmente, por mais que eu concorde com o Carlos Loures, cada vez acredito menos na existência de um poder político que crie as condições susceptíveis de permitirem ao povo "sentir a necessidade da arte e da sua procura" como o Adão diz. Mesmo quando a representante da cultura no Governo é uma artista, e a nossa é, sempre outros valores se imporão aos valores culturais. Bem sei que é um assunto controverso mas, actualmente, não me sinto em pecado se disser que estou convencida de que a criação cultural de qualidade - embora a cultura em si seja mais do que isso - , emanará, na generalidade, sempre de elites intelectuais que não deixam por isso de ter o dever de a difundir o mais possível e a fazer amar por toda a gente. Mas, quando, nas próprias universidades se assiste àquelas festarolas cheias saltos e cabriolices, mais Quins Barreiros e etc., que dizer? Aquele é o povo que vai transmitir a cultura ao povo. Achei muito interessante a dissertação que o Adão faz sobre o que é ou não poesia. Também sinto isso muito assim, eu que tenho sido sempre mais leitora de prosa do que de poesia. Ainda ontem à noite alinhavei umas frases sem importância mas que traduzem brevemente o meu acto de contrição para com a poesia (as palavras de natureza religiosa que usei são só figuras de estilo).

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