terça-feira, 28 de setembro de 2010

A Cartilha Maternal de João de Deus

Carlos Loures

Aprendi a ler com quatro anos. A minha mãe encarregou-se de me resolver esse problema, utilizando um método que, na altura já tinha muitas dezenas de anos, mas então (como agora) continua a funcionar – o método de João de Deus e da sua «Cartilha Maternal». Dizia ela, que aprendera a ler vinte e tal anos antes pela «Cartilha», que não havia melhor método. Não sei se havia ou não, mas os meus dois filhos frequentaram desde os dois anos um Jardim-Escola João de Deus e aprenderam a ler, também muito cedo, pelo mesmo método pelo qual a minha mãe eu aprendêramos.

Ainda hoje, numa era de novas tecnologias, o sistema pedagógico de João de Deus funciona perfeitamente, o que confirma que, por vezes, as inovações não substituem o que já existe – presente e passado podem coexistir e, até, complementar-se,




A «Cartilha Maternal», que tem o subtítulo de Arte de Leitura, concebida pelo poeta e pedagogo, foi publicada em 1876, constituindo a base de um método de ensino de leitura a crianças e adultos analfabetos. Na época, mais de 80% dos portugueses não sabia ler nem escrever, pelo que, mais do que o «Magalhães» relativamente aos nossos dias, A «Cartilha» veio ajudar a resolver um dos maiores problemas nacionais. Um livrito pequeno e barato que foi uma das obras mais vezes reimpressas em Portugal, tendo sido usada nas escolas portuguesas por quase meio século (até 1921).

A publicação da «Cartilha Maternal», foi recebida entusiasticamente por um país onde o analfabetismo, a par da pobreza, era uma tragédia, sendo o ensino mútuo a norma praticada no reduzido número de escolas existentes e em que os responsáveis políticos, apesar de afirmarem repetidamente que a escola era o meio de regeneração da sociedade portuguesa, ainda não se tinha conseguido reconciliar com a anterior tentativa de alteração metodológica representada pelo «Método Português de Castilho».

António Feliciano de Castilho tinha-se batido contra os métodos de repetição e soletração ritmada (e a tabuada cantada). Porém, o professorado mostrava enorme relutância em adoptar a metodologia. Apesar de ter conseguido que em 1853 fosse criada, na Escola Normal de Lisboa, uma aula de ensaio do sistema, aula que se manteve até 1858, o sistema não pegou. A sua morte em 1875 ditou um maior apagamento da sua inovadora proposta educativa. Porém, apesar deste aparente insucesso, estava aberto o caminho para as cartilhas.

No ano seguinte ao da morte de Castilho, João de Deus apresentou a sua «Cartilha», a intelectualidade e o professorado, mentalizados pelo método Castilho, já estava receptivo à a alteração metodológica. A partir de 1877, começou a difundir-se o chamado «método João de Deus» e em 1882, por decisão parlamentar, foi decretado o uso generalizado da «Cartilha Maternal» nas escolas portuguesas, mantido até 1903, quando a metodologia se tornou facultativo. O «Método de João de Deus» tornou-se rapidamente no sistema de iniciação à leitura preferido pelos professores A «Cartilha Maternal» foi precursora de um aluvião de outras cartilhas,. Até ao final dos anos de 1930 foram dos livros com maior tiragem em Portugal e no Brasil, sendo ainda hoje reeditados.

Além da excelência pedagógica do livrinho, o seu grafismo não terá sido estranho ao êxito obtido. Não foi por acaso que João de Deus escolheu, ou foi aconselhado a escolher, o alfabeto Clarendon, da família das egípcias, apresentado em 1845 por R. Beley & Co, e que se caracterizava pela forma redonda dos caracteres, com um contraste de espessura quase inexistente, e com patilhas ou serifas, permitindo uma leitura contínua e fácil - a obra destinava-se a crianças e a adultos analfabetos. Um elevado grau de legibilidade e de «higiene de leitura», contribuiu para a disseminação do método, ainda hoje aplicado nos jardins-escola João de Deus. Nestes 134 anos quantos milhares de crianças e de adultos analfabetos dele terão beneficiado? A «Cartilha Maternal» foi, no último quarto do século XIX, um passo mais importante do que hoje o «Magalhães». E muito mais barato.


Um pequeno livrinho que, a seguir à merenda, a minha mãe trazia para a mesa e sílaba a sílaba ia metendo na minha cabeça pequenas poções da magia que me dava acesso a um universo de prodígios. Uma janela abriu-se para mim, uma janela que deitava para um mundo maravilhoso e ao mesmo tempo tenebroso, habitado por magos e duendes, donzelas e megeras, heróis e sinistros vilões… O mundo real, afinal de contas.

Uma magia que uma jovem chamada Judite com a ajuda de um velho poeta chamado João criaram expressamente para um miúdo chamado Carlos. Numa salinha de um quinto andar pombalino, vendo por detrás do rosto de minha mãe o Castelo de São Jorge sobressaindo como um orgulhoso navio de um oceano de telhados vermelhos, a chave que me iria dar acesso ao mundo das maravilhas construía-se dentro do meu pequeno cérebro.

Obrigado Judite. Obrigado João.

18 comentários:

  1. Carlos,
    Tal como tu, também eu aprendi a ler pelo método de João de Deus e da sua «Cartilha Maternal». Como dizes foi fácil a aprendizagem da leitura e da escrita que, para mim, só começou na Escola Primária (1ª classe) já quase com 6 anos.
    Agora já entendo porque és escritor com livros Editados e eu só tenho ideias e projectos. Começaste mais cedo (aos 4 anos).
    Parece que o método agora é outro, pois eu tentei ensinar os meus netos e eles dizem que não é assim. O certo é que a minha neta mais velha já anda no 3º ano e tem dificuldade na escrita e na leitura, o que não sucedia com as perssoas da nossa geração na 3ª classe. Até já tinhamos feito um exame para passar da 2ª para a 3ªclasse.
    Independentemente do método o que preocupa é que, na prática, os jovens não aprendem a escrever e a prova é que a maioria dos licenciados escrevem com erros

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  2. Eu, também, aprendi a ler pela Cartilha de João de Deus. Foi o meu pai que me ensinou.

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  3. Mas vinte tal anos depois de mim, quarenta e tal depois da minha mãe, os meus filhos aprenderam pelo mesmo método e hoje há crianças que continuam a segui-lo. Sinal de que não se desactualizou.

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  4. Por isso as tuas avós mesmo quando tinhas medíocre te achavam muito inteligente, meu menino...

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  5. Ó Carlos, diz-me uma coisa: o método da Cartilha não é semelhante ao método do Paulo Freire que se usou em campanhas de alfabetização a seguir ao 25 de Abril?

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  6. O método João de Deus conheço-o muito bem (na óptica do utilizador) - do de Paulo Freire só sei o nome. Nem sabia que tinha sido usado em Portugal. Era giro comparar. Logo à noite talvez possa fazer uma pequena investigação. Tenho para aqui livros que me podem esclarecer.

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  7. Eu sei que foi usado por alguns grupos. Eu conheci um onde a minha irmã esteve a dar aulas. Não sei é se foi usado nas campanhas oficiais.

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  8. O coronel Matos Gomes (major à época e vice-comandante do Regimento de Comandos), foi quem orientou no terreno a Operação Maio-Nordeste. Podemos pergunar-lhe como é que a coisa se passou.

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  9. Falámos várias vezes com ele e nunca calhou vir esse assunto à baila. Já não o vejo há muito tempo. Era boa ideia. E ele não quererá alinhar no Estrolabio? E mais um homem...

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  10. Foi convidado logo ao princípio. Declinou com uma carta muito amável que poderás ler seleccionado na barra da direita. Essa carta deu lugar a uma resposta minha e a outra do Leça. O Matos Gomes tem a ideia de que, mais tarde ou mais cedo, os blogues implodem por tnsões internas. Se tem razão, esperemos que connosco seja mais tarde.

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  11. Ó Carlos, isso não nos vai acontecer, esperança não nos falta.Só nos falta a fé que não há cá muita e a caridade de quem nos queira ler. Acho que saíu um livro dele há pouco tempo. Já não sei onde vi o anúncio.

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  12. Quem nos queira ler, há muita, felizmente, fé é que nem por isso...

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  13. Em duas palavras.
    O método Paulo Freire utilizava-se cá, ainda ninguém pensava em campanhas Maio-Nordeste. Antes do 25 de Abril a minha mulher usou-o na alfabetização de adultos no Casal Ventoso e mais tarde na Beira Baixa. Tenho um livro de Paulo Freire "Pedagogia do Oprimido", edição de 1972.
    A aprendizagem da leitura é feita em ambos os autores através do método silábico, mas no caso de Paulo Freire parte-se de palavras de uso quotidiano dos alunos adultos, discutindo os seus significados e envolvência com o meio social, procurando a consciencialização através de debates colectivos para os seus problemas e da sociedade. Só em seguida partem para a divisão silábica da palavra, as famílias fonéticas etc.

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  14. Eu só me lembro do método Chines, que consistia em pôr a malta a dividir as orações dos Lusíadas...nunca mais se recupera!

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  15. Carlos, tens que põr a tua cegonha a escrever aqui! Ela teria muito para nos ensinar!...

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  16. Não digas isso Luís que estás a prestar mau serviço público, como coatumas dizer. Quem estudou "Os Lusíadas" com o rigor com que nós estudámos (nem tudo era mau no ensino desse tempo), ficou com a capacidade para interpretar um texto e saber escrever. É patente a diferença entre quem aprendeu o português nessa altura e quem estuda agora como se aprender fosse um passatempo e não uma actividade difícil e rigorosa. Eu agradeço ter tido uma professora de português exigente e muito boa do 1º. ao 5º. ano dio liceu. E não fiquei nada traumatizada com isso.

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  17. É uma brincadeira, embora sendo verdade tudo o que dizes era muito penoso, naquela idade.Mas quem interpretava "Os Lusíadas" era capaz de interpretar qualquer outro texto Lá isso é verdade!

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  18. Pois, claro que era muito difícil e, também, dependia dos professores que tivessemos.

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