Carlos Loures
Aprendi a ler com quatro anos. A minha mãe encarregou-se de me resolver esse problema, utilizando um método que, na altura já tinha muitas dezenas de anos, mas então (como agora) continua a funcionar – o método de João de Deus e da sua «Cartilha Maternal». Dizia ela, que aprendera a ler vinte e tal anos antes pela «Cartilha», que não havia melhor método. Não sei se havia ou não, mas os meus dois filhos frequentaram desde os dois anos um Jardim-Escola João de Deus e aprenderam a ler, também muito cedo, pelo mesmo método pelo qual a minha mãe eu aprendêramos.
Ainda hoje, numa era de novas tecnologias, o sistema pedagógico de João de Deus funciona perfeitamente, o que confirma que, por vezes, as inovações não substituem o que já existe – presente e passado podem coexistir e, até, complementar-se,
A «Cartilha Maternal», que tem o subtítulo de Arte de Leitura, concebida pelo poeta e pedagogo, foi publicada em 1876, constituindo a base de um método de ensino de leitura a crianças e adultos analfabetos. Na época, mais de 80% dos portugueses não sabia ler nem escrever, pelo que, mais do que o «Magalhães» relativamente aos nossos dias, A «Cartilha» veio ajudar a resolver um dos maiores problemas nacionais. Um livrito pequeno e barato que foi uma das obras mais vezes reimpressas em Portugal, tendo sido usada nas escolas portuguesas por quase meio século (até 1921).
A publicação da «Cartilha Maternal», foi recebida entusiasticamente por um país onde o analfabetismo, a par da pobreza, era uma tragédia, sendo o ensino mútuo a norma praticada no reduzido número de escolas existentes e em que os responsáveis políticos, apesar de afirmarem repetidamente que a escola era o meio de regeneração da sociedade portuguesa, ainda não se tinha conseguido reconciliar com a anterior tentativa de alteração metodológica representada pelo «Método Português de Castilho».
António Feliciano de Castilho tinha-se batido contra os métodos de repetição e soletração ritmada (e a tabuada cantada). Porém, o professorado mostrava enorme relutância em adoptar a metodologia. Apesar de ter conseguido que em 1853 fosse criada, na Escola Normal de Lisboa, uma aula de ensaio do sistema, aula que se manteve até 1858, o sistema não pegou. A sua morte em 1875 ditou um maior apagamento da sua inovadora proposta educativa. Porém, apesar deste aparente insucesso, estava aberto o caminho para as cartilhas.
No ano seguinte ao da morte de Castilho, João de Deus apresentou a sua «Cartilha», a intelectualidade e o professorado, mentalizados pelo método Castilho, já estava receptivo à a alteração metodológica. A partir de 1877, começou a difundir-se o chamado «método João de Deus» e em 1882, por decisão parlamentar, foi decretado o uso generalizado da «Cartilha Maternal» nas escolas portuguesas, mantido até 1903, quando a metodologia se tornou facultativo. O «Método de João de Deus» tornou-se rapidamente no sistema de iniciação à leitura preferido pelos professores A «Cartilha Maternal» foi precursora de um aluvião de outras cartilhas,. Até ao final dos anos de 1930 foram dos livros com maior tiragem em Portugal e no Brasil, sendo ainda hoje reeditados.
Além da excelência pedagógica do livrinho, o seu grafismo não terá sido estranho ao êxito obtido. Não foi por acaso que João de Deus escolheu, ou foi aconselhado a escolher, o alfabeto Clarendon, da família das egípcias, apresentado em 1845 por R. Beley & Co, e que se caracterizava pela forma redonda dos caracteres, com um contraste de espessura quase inexistente, e com patilhas ou serifas, permitindo uma leitura contínua e fácil - a obra destinava-se a crianças e a adultos analfabetos. Um elevado grau de legibilidade e de «higiene de leitura», contribuiu para a disseminação do método, ainda hoje aplicado nos jardins-escola João de Deus. Nestes 134 anos quantos milhares de crianças e de adultos analfabetos dele terão beneficiado? A «Cartilha Maternal» foi, no último quarto do século XIX, um passo mais importante do que hoje o «Magalhães». E muito mais barato.
Um pequeno livrinho que, a seguir à merenda, a minha mãe trazia para a mesa e sílaba a sílaba ia metendo na minha cabeça pequenas poções da magia que me dava acesso a um universo de prodígios. Uma janela abriu-se para mim, uma janela que deitava para um mundo maravilhoso e ao mesmo tempo tenebroso, habitado por magos e duendes, donzelas e megeras, heróis e sinistros vilões… O mundo real, afinal de contas.
Uma magia que uma jovem chamada Judite com a ajuda de um velho poeta chamado João criaram expressamente para um miúdo chamado Carlos. Numa salinha de um quinto andar pombalino, vendo por detrás do rosto de minha mãe o Castelo de São Jorge sobressaindo como um orgulhoso navio de um oceano de telhados vermelhos, a chave que me iria dar acesso ao mundo das maravilhas construía-se dentro do meu pequeno cérebro.
Obrigado Judite. Obrigado João.
terça-feira, 28 de setembro de 2010
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Carlos,
ResponderEliminarTal como tu, também eu aprendi a ler pelo método de João de Deus e da sua «Cartilha Maternal». Como dizes foi fácil a aprendizagem da leitura e da escrita que, para mim, só começou na Escola Primária (1ª classe) já quase com 6 anos.
Agora já entendo porque és escritor com livros Editados e eu só tenho ideias e projectos. Começaste mais cedo (aos 4 anos).
Parece que o método agora é outro, pois eu tentei ensinar os meus netos e eles dizem que não é assim. O certo é que a minha neta mais velha já anda no 3º ano e tem dificuldade na escrita e na leitura, o que não sucedia com as perssoas da nossa geração na 3ª classe. Até já tinhamos feito um exame para passar da 2ª para a 3ªclasse.
Independentemente do método o que preocupa é que, na prática, os jovens não aprendem a escrever e a prova é que a maioria dos licenciados escrevem com erros
Eu, também, aprendi a ler pela Cartilha de João de Deus. Foi o meu pai que me ensinou.
ResponderEliminarMas vinte tal anos depois de mim, quarenta e tal depois da minha mãe, os meus filhos aprenderam pelo mesmo método e hoje há crianças que continuam a segui-lo. Sinal de que não se desactualizou.
ResponderEliminarPor isso as tuas avós mesmo quando tinhas medíocre te achavam muito inteligente, meu menino...
ResponderEliminarÓ Carlos, diz-me uma coisa: o método da Cartilha não é semelhante ao método do Paulo Freire que se usou em campanhas de alfabetização a seguir ao 25 de Abril?
ResponderEliminarO método João de Deus conheço-o muito bem (na óptica do utilizador) - do de Paulo Freire só sei o nome. Nem sabia que tinha sido usado em Portugal. Era giro comparar. Logo à noite talvez possa fazer uma pequena investigação. Tenho para aqui livros que me podem esclarecer.
ResponderEliminarEu sei que foi usado por alguns grupos. Eu conheci um onde a minha irmã esteve a dar aulas. Não sei é se foi usado nas campanhas oficiais.
ResponderEliminarO coronel Matos Gomes (major à época e vice-comandante do Regimento de Comandos), foi quem orientou no terreno a Operação Maio-Nordeste. Podemos pergunar-lhe como é que a coisa se passou.
ResponderEliminarFalámos várias vezes com ele e nunca calhou vir esse assunto à baila. Já não o vejo há muito tempo. Era boa ideia. E ele não quererá alinhar no Estrolabio? E mais um homem...
ResponderEliminarFoi convidado logo ao princípio. Declinou com uma carta muito amável que poderás ler seleccionado na barra da direita. Essa carta deu lugar a uma resposta minha e a outra do Leça. O Matos Gomes tem a ideia de que, mais tarde ou mais cedo, os blogues implodem por tnsões internas. Se tem razão, esperemos que connosco seja mais tarde.
ResponderEliminarÓ Carlos, isso não nos vai acontecer, esperança não nos falta.Só nos falta a fé que não há cá muita e a caridade de quem nos queira ler. Acho que saíu um livro dele há pouco tempo. Já não sei onde vi o anúncio.
ResponderEliminarQuem nos queira ler, há muita, felizmente, fé é que nem por isso...
ResponderEliminarEm duas palavras.
ResponderEliminarO método Paulo Freire utilizava-se cá, ainda ninguém pensava em campanhas Maio-Nordeste. Antes do 25 de Abril a minha mulher usou-o na alfabetização de adultos no Casal Ventoso e mais tarde na Beira Baixa. Tenho um livro de Paulo Freire "Pedagogia do Oprimido", edição de 1972.
A aprendizagem da leitura é feita em ambos os autores através do método silábico, mas no caso de Paulo Freire parte-se de palavras de uso quotidiano dos alunos adultos, discutindo os seus significados e envolvência com o meio social, procurando a consciencialização através de debates colectivos para os seus problemas e da sociedade. Só em seguida partem para a divisão silábica da palavra, as famílias fonéticas etc.
Eu só me lembro do método Chines, que consistia em pôr a malta a dividir as orações dos Lusíadas...nunca mais se recupera!
ResponderEliminarCarlos, tens que põr a tua cegonha a escrever aqui! Ela teria muito para nos ensinar!...
ResponderEliminarNão digas isso Luís que estás a prestar mau serviço público, como coatumas dizer. Quem estudou "Os Lusíadas" com o rigor com que nós estudámos (nem tudo era mau no ensino desse tempo), ficou com a capacidade para interpretar um texto e saber escrever. É patente a diferença entre quem aprendeu o português nessa altura e quem estuda agora como se aprender fosse um passatempo e não uma actividade difícil e rigorosa. Eu agradeço ter tido uma professora de português exigente e muito boa do 1º. ao 5º. ano dio liceu. E não fiquei nada traumatizada com isso.
ResponderEliminarÉ uma brincadeira, embora sendo verdade tudo o que dizes era muito penoso, naquela idade.Mas quem interpretava "Os Lusíadas" era capaz de interpretar qualquer outro texto Lá isso é verdade!
ResponderEliminarPois, claro que era muito difícil e, também, dependia dos professores que tivessemos.
ResponderEliminar