quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Coisas breves. Cavaco recebe partidos

Carlos Mesquita

Cavaco Silva reuniu hoje com partidos de esquerda. Recebeu-os na sala trapezoidal de S. Bento, onde para além dos assentos há uma mesa redonda com apenas quatros pernas, em cima um candeeiro de lâmpadas anti-melgas. Ao fundo uma pantera de louça e um cavalete de pintura com um quadro de tela branca roto desde o centro esquerdo ao centro direito.

Aníbal (é o nome próprio com que se levanta) acordou depois de uma noite mal dormida de preocupações.

-Ouvi espirrar, quem raio me acorda aos espirros?! Foi o teu ouvido, Aníbal. Não foi nada o meu ouvido! Eu ouvi mesmo espirrar! Foi o teu ouvido que espirrou, Aníbal. Ouviu de novo. O meu ouvido espirrou? Qual? Não pode ser, lamentou-se enquanto se levantava, o meu ouvido esquerdo está outra vez constipado, logo hoje que vou escutar os partidos deste lado, lindo serviço.

Aníbal passou o resto do tempo até à reunião a testar a capacidade de ouvir à esquerda, Norberto, o 2º motorista deu uma ajuda. Um, dois, experiência…está a ouvir Sr. Presidente? Ora comece lá a falar Sr. Norberto. Um, dois, experiência…está a ouvir Sr. Presidente? Ó Sr. Norberto diga qualquer coisa para ver se a minha acuidade auditiva está recuperada, olhe deixe estar que já vem ali a Sra. Deputada dos Verdes; essa não terei dificuldade em ouvir que tem uma voz vibrante, irritante mas vibrante.

Como está Sra. Deputada? Sr. Presidente queria agradecer-lhe ter-nos convidado para sermos ouvidos nesta altura tão difícil, os nossos fins… Pois é Sra. deputada, cortou o anfitrião, era muito bom com este tempo fazermos a reunião nos nossos belos jardins, mas manda o protocolo que usemos os aposentos interiores. Entremos.

Sentaram-se e o Presidente disse: - Cumpramos a Constituição que me recomenda nestas ocasiões ouvir os partidos. A delegada dos Verdes foi dizendo de sua justiça enquanto o seu interlocutor pensava; é tal e qual como quando a vejo no Canal Parlamento com o som desligado, talvez um pouco mais calma. Ainda lhe chegou ao ouvido bom qualquer coisa como “novas políticas” que estava habituado a ouvir vindo desse lado direito mas mais nada. O tempo esgotou-se, levantaram-se, a deputada perguntou se o Sr. Presidente não se importava que ela dissesse aos jornalistas que ele estava preocupado por causa do que disse o ministro da presidência. Cavaco foi dizendo que era preciso cuidado com o que se dizia porque estamos sob observação externa, o que foi interpretado como consentimento. Voltou a agradecer ter sido recebida e foi para os pés de microfone.

Há hora destes acontecimentos ainda não tinham chegado os delegados do Bloco de Esquerda e do PCP para as respectivas audiências, espera-se que agradeçam o facto de terem sido convocados e que jurem que não querem ajudar a criar uma crise política.

Cavaco Silva no intervalo confessava aos seus colaboradores que a audição do partido “Os Verdes” tinha corrido de forma extraordinária, não tinha ouvido uma crítica, uma contestação, o mais leve comentário desagradável. Esperava que o mesmo acontecesse com o BE e o PCP, desejando que na delegação do BE viesse o médico deputado para o aconselhar sobre a trompa de Eustáquio. Também o Jerónimo de Sousa que foi afinador de máquinas o podia ajudar a afinar o estribo, o martelo e a bigorna do ouvido, tudo isso, evidentemente, depois das audiências terminarem.

3 comentários:

  1. Parabéns, Carlos Mesquita (os Carlos são uma praga que aqui entrou). É preciso ter talento para relatar com esse humor a vacuidade.
    Aproveito para te agradecer o esclarecimento sobre o método do Paulo Freire. Relembraste-me em que consistia. Não cheguei a ler "A Pedagogia do Oprimido", mas ouvi a explicação algures.E obrigada pelos marmelos.

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  2. Faz-te bem ir apanhar uvas! Apesar de não provares um dos seus produtos possíveis, até parece que o tinhas feito, quando escreveste isto... O que lhe dá ainda mais valor!

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