quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Guerra da Cal, homem de três corações. - I -


Carlos Durão


Foi a filóloga italiana Luciana Stegagno Picchio quem, em certo congresso da AGAL, se referiu a Ernesto Guerra da Cal como “homem de três corações”, unindo assim num jogo de palavras uma cidade brasileira com a firme dedicação de Guerra da Cal à tríplice Lusofonia da Galiza, Portugal e o Brasil.

Foi o nosso Ernesto poeta, o primeiro poeta galego moderno que tratou temas universais, no espaço e no tempo, desde “dentro” e desde “fora”; contudo, na sua pátria sempre proscrito, e maldito, pelos que detêm o poder linguístico, quer dizer político, quer dizer sucursal de Madrid.

Foi, com certeza, o poeta galego que mais eco teve dentro e fora da Galiza, como testemunha a abundandíssima bibliografia transnacional e transcontinental a que deu origem a sua obra. E foi, em fim, o professor e cientista galego de maior projeção e prestígio internacional, sobretudo pelo seu trabalho pioneiro nos estudos de Eça de Queirós (1).

Mas para a Galiza ele deixou ainda um legado fulcral, no chamado reintegracionismo linguístico, com o seu trabalho, com o seu exemplo, com os seus contatos académicos no mundo lusófono.

Embora ele nascera no Ferrol atlântico, a sua identificação anímica foi sempre com o luguês Vale de Quiroga, onde tinha família, e com o rio Sil, amiúde lembrado na sua poesia. Madri foi onde cursou os seus estudos, de bacharelato e de Letras, e onde madurou politicamente, com outros vultos do galeguismo cultural e político: Otero Pedraio, Soares Picalho, Vilar Ponte, Ramom Cabanilhas, Blanco Amor, Serafim Ferro, mais tarde Castelão (2) , e onde fez amizade com os professores espanhóis Américo Castro e Navarro Tomás, conheceu o poeta Pablo Neruda, colaborou com o cineasta Buñuel, e teve com Lorca uma íntima relação que culminou na publicação dos famosos “Seis poemas galegos”(3) .

Foi detido e encarcerado pela sua militância no movimento grevista estudantil que desafiou a ditadura de Primo de Rivera e, ao se produzir o golpe militar fascista no 1936, interveio no assalto ao Cuartel de la Montaña; alista-se depois nas Milícias Galegas, combatendo na frente de Toledo, colabora na revista antifascista Nova Galiza, destinada aos soldados galegos e promovida pela Oficina Galega do Comissariat de Propaganda da Generalitat de Catalunya, é enviado a Nova Iorque, em missão oficial do SIM (Servicio de Información Militar) do Ministério da Guerra espanhol; surpreende-o ali a derrota republicana, ficando exilado nos EUA e volvendo a entrar em contato com Castelão e com os antifascistas galegos no exílio, como Emílio Gonçales Lopes.

Instalado o regime fascista em Madrid, e com fracas possibilidades de voltar com vida à Galiza (4) , Guerra da Cal nacionaliza-se norte-americano, completa os seus estudos universitários na Columbia University, e chega a ser catedrático na New York University. Realiza ali os trabalhos de pesquisa que culminam no seu magnum opus Língua e Estilo de Eça de Queiroz, pelo que é justamente reconhecido e louvado internacionalmente, e condecorado em Portugal. Ocupa-se da parte galega do Dicionário das Literaturas Portuguesa, Galega e Brasileira. Pronuncia conferências, realiza seminários, colabora em trabalhos de investigação para universidades do Brasil e de Portugal, sempre reclamando, em todo o mundo lusófono, o reconhecimento da Galiza como pertencente a esse mundo, e em toda a parte dizendo sempre abertamente que ele era galego.

Assim o fez, por exemplo, no Brasil, aonde se deslocou para participar, com M. Rodrigues Lapa, e “como galego”, em reuniões preparatórias a respeito do Acordo ortográfico de 1945; também participou no Congresso Internacional de Estudos Portugueses e Brasileiros, na Baía, em agosto de 1959, como no I Simpósio Lusobrasileiro sobre a Língua Portuguesa Contemporânea na Universidade de Coimbra em 1967.

A relação de Guerra da Cal com o Brasil patenteou-se ainda na acolhida dos estudos brasileiros na sua cadeira nova-iorquina, e no seu projeto, reiteradamente afirmado, de dedicar à obra de Machado de Assis (anunciado com ocasião do 150 aniversário do seu nascimento) um estudo do fôlego do que lhe dedicara a Eça; o projeto não vigorou. Em 1960 é chamado a participar como convidado de honra, junto com Jean- Paul Sartre, no Congresso de Crítica Literária do Brasil; à morte do literato francês André Malraux abriu-se o debate na Academia Brasileira de Letras sobre quem deveria cobrir essa vacante como sócio correspondente, e o nome de Guerra da Cal foi baralhado junto como o de Sartre (5).

Nos anos 1959 e 1963 publica os seus seminais poemários Lua de Além-Mar (o primeiro livro no que un autor aposta pelo reintegracionismo linguístico após o chamado Rexurdimento) e Rio de Sonho e Tempo, na editora Galaxia (6) .

Reformado da súa cátedra na universidade americana, Guerra da Cal muda a sua residência para o Estoril, e posteriormente, por enfermidade da sua esposa, a Londres. Nesses anos impulsou o movimento reintegracionista desde o exílio, como R. Carvalho Calero faria no interior. Foi graças aos seus contatos com os seus colegas em universidades lusófonas, à sua acessibilidade para a mocidade reintegracionista, e com o seu respaldo académico, que a Galiza conseguiu um posto de observador nas negociações dos Acordos Ortográficos, da Ortografia Simplificada em 1986, no Rio, não vigorado, e da Ortografia Unificada em 1990, em Lisboa, hoje vigorado. (Foi para isso que se criou a Comissão Galega do Acordo Ortográfico, da que ele foi Presidente, delegando as suas atribuições em membros das Irmandades da Fala e da AGAL.)

Chegados aqui, é hora de citar algumas das firmes opiniões deste vulto fundamental do reintegracionismo, da cultura galega e da Lusofonia.

Na edição de Galaxia de Lua de Além-Mar, diz o autor (cito pela ed. definitiva): “Consideramos, pois, iniludível a nossa reintegração no perímetro e nas correntes universais do ‘mundo que o português criou’ aquém e além-mar. O verdadeiro meridiano espiritual da Galiza passa por Lisboa e pelo Rio de Janeiro -e quanto antes reconheçamos esta verdade, antes se abrirão à nossa antiga voz recuperada as possibilidades de ecoar fora dos restritos confins comarcais nos que nos estamos fechando, cegos às vastas perspectivas que temos diante dos olhos”.

Reitera a sua posição em publicações posteriores: no “Antelóquio indispensável” do seu Futuro imemorial (7): “Eu, sem pejo nenhum, afirmo aqui o meu orgulho de ter sido o primeiro escritor galego, desde o Ressurgimento, a levar a vias de facto essa tão repetidamente desejada aproximação da nossa língua escrita ao português [...] Em 1959 fui de facto “iniciador dessa reintegração” no meu poemário Lua de Alén-Mar, com o que abri fogo nessa batalha [...] Esse apelo não caiu em saco roto. Nele teve princípio a corrente “reintegracionista” contemporânea - na que hoje enfileira o melhor e mais capacitado da nossa mocidade”.

“Portugal era o desenvolvimento cultural, pleno, da minha Galiza natal. Era o que a Galiza deveria ter sido se as vicissitudes e os caprichos da História não a tivessem transviado do seu destino natural, deturpando a sua fisionomia espiritual, quebrando a sua tradição, impondo-lhe formas de cultura alheias, estranhas ao seu carácter” (8) . “A Galiza é um país semiconquistado e eu não posso conviver com uma Galiza mediatizada pelo Estado Central. Estou aqui numa Galiza livre, onde falo a minha língua e só tenho que ouvir de vez em quando um turista falando castelhano. Mas se for à Galiza tenho que estar a ouvir os galegos a preferirem, muitos deles, serem espanhóis de quarta classe que galegos de primeira” (9).

“Fui pioneiro do “reintegracionismo” e hoje dou um novo passo à frente como primeiro escritor galego a abraçar o “lusismo integral”; sem ter para isso, já se vê, que abjurar da minha identidade galaica. Bem ao contrário, é assim que eu completo a minha integração individual no mundo lusíada –que é a última etapa da minha ‘peregrinatio’ íntima. E posso respirar bem fundo. Porque a língua portuguesa é o meu lar perdido e reencontrado”(10) .

“Não fazemos nisto senão seguir o conselho venerável do patriarca Murguia, que já recomendou a unificação linguística com Portugal, apontando que nela estava o porvir do nosso idioma…”(11) . “É um facto que a língua irmã contém, no seu nível rústico, quase todo o galego. Há que fazer -e isso é tão fácil!- que o galego contenha, no seu nível culto, o português” .(12) “… contribuir, na medida das minhas humildes forças, à campanha de “re-galeguizar a Galiza, tornando-a o mais galaico-portuguesa possível. Porque acredito, a pé junto, que essa é a única âncora de salvação da nossa língua, esteio basilar da nossa identidade nacional ameaçada –pelos inimigos de fora e de dentro…(13)” “Não transigir na luta pela identidade. Se eu estiver na Galiza, não pronunciaria uma palavra em espanhol… Aí essa geração cresce pensando que o galego é oprobrioso, que é uma carga de íntima proletarização, e que falar galego é diminuir-se socialmente. Então estamos perdidos, somos a última geração que vamos falar galego” (14)

No “Antelóquio indispensável” diz: “A língua nativa ficou privada da norma culta. Essa função perdida foi preenchida por um castelhano de pobre importação, eivado de galaicismos –vitimado, como a língua nativa, pela erosão mútua desta diglossia… a Galiza tem na outra beira do Minho, e do outro lado da raia, a sua própria língua, trabalhada e enriquecida por séculos de aprimorado cultivo… Um ‘sermo politus’, que também é historicamente nosso… Lá está a norma culta que nos falta, polida e civilizada… apesar da acirrada, e solapada, oposição que esta tendência levanta tanto nos sectores “isolacionistas” e “espanholistas” da direita reacionária como nos do populismo proletarizante da esquerda radical.” (…) “..os que neste momento detêm o poder autonómico –clientes e agentes do Estado Central, com todos os seus recursos, o seu nepotismo e os seus meios de comunicação de massas na mão. Essa aparelhagem política é usufruída pelos dois grandes partidos espanhóis, da oposição e do Governo, ambos de tradição unitarista e ambos enfeudados ao longevo caciquismo eleitoralista herdado da Monarquia e do Franquismo. Esse é o bando da “Xunta de Galicia” [sic] que, de colaboração com algumas entidades “isolacionistas” esclerosadas, engenhou e “oficializou”, de maneira maleficamente subreptícia, umas aberrantes Normas cujo evidente propósito é condenar o galego ao languidescimento como dialecto –do espanhol…” (…) “eu tenho a convicção de que a única defesa do galego contra a política linguicida dos “espanholizantes” descansa na progressiva adopção do padrão luso-brasileiro que os “reintegracionistas” perfilham”(15) .

“Acontece que mercê à vantagem de uma norma que vem da comunidade linguística lusófona, a nossa língua galego-portuguesa passa a ser a terceira língua ecuménica do mundo, depois do inglês e o espanhol .(16)” “Estes bastardos culturais seriam os que integram algumas entidades “isolacionistas” esclerosadas, esses sectores “espanholistas” da direita reacionária e até alguns intelectuais do populismo proletarizante da esquerda radical, que por ignorância culposa, por tratar-se de um intelectual, ou por má fé arvoram e perpetuam como instrumento de cultura e criação as formas mais cruas e rústicas do patois híbrido das vilas” (17).

Finalmente, em “Preito mítico a Dom Pedro Pardo de Cela”(18) escreve, premonitório, o que poderia ser o seu próprio epitáfio:

Ainda hoje a Galiza chora
Estremecida
o martírio
daquele bravo entre os bravos
paladino
do nosso Reino de outrora
ancestral
e genuíno
E sente a pungente dor
da sempre aberta ferida
da Liberdade perdida
duma Nação soberana
sem estrangeiro senhor
de que ele foi defensor (…)

______________
 
1-Dentre as diversas edições que teve desde 1954 a sua monumental Língua e Estilo de Eça de Queiroz, a definitiva é a portuguesa de Elsie Allen da Cal, Livraria Almedina, Coimbra, 1981.

2-Também conheceu Emílio Gonçales Lopes e, nas suas tempadas na Galiza, A. Fole, A. Cunqueiro, R. Carvalho Calero, etc.
3-Vide infra
4-Evidentemente no Estado Espanhol ele era, por dizê-lo diplomaticamente, persona non grata. Ele próprio nos lembra que um tio-avô seu, Inocêncio, “foi assassinado pelos franquistas em Vigo”.
5-Vide: Rangel, Maria Lucia, "En el té de la Academia de Letras, la mayoría, supersticiosa, prefiere café". Revista de Cultura Brasileña, no. 44 - junio 1977, Embajada de Brasil, Madrid, p. 109 [http://hemeroteca.fundacionhispanobrasilena.es/hemeroteca/ver/954]
6-com prólogos de Jacinto do Prado Coelho e Ramón Otero Pedrayo, respetivamente, Ed. Galaxia, Vigo (alguns poemas de Lua de Além-Mar foram publicados antes na Memória Anual da Casa Galicia de Nova Iorque); ed. definitiva da AGAL em 1991
7-Futuro imemorial (Manual de velhice para principiantes), Sá da Costa Editora, Lisboa, 1985, pp. 9-11; recolhido em Vol II, 1986, de Temas de O Ensino, nos 6/10, “Linguística, sociolinguística e literatura galaico-luso-brasileira-africana de expressão portuguesa”
8-Nota Prévia, “Língua e Estilo de Eça de Queiroz”, op. cit.
9-Entrevista com Ernesto Guerra da Cal, no Jornal de Letras, Artes e Ideias, no 56, 12 de abril de 1983.
10-De “Antelóquio indispensável”, em Futuro imemorial, op. cit.
11-Nota do autor a “Lua de além-mar”, Vigo, Galaxia, 1959.
12-p. 50 da ed. da AGAL
13 -Id., p. 51.(Continua)

14 - J. Posada, “Conversa no Estoril com Ernesto Guerra da Cal”, Agália, no 39, 1994.
15“Antelóquio indispensável”, op. cit.
16-Joel Gomes, “Crónica de um encontro em Lisboa”, Agália, no 39.
17-Ma do Carmo Henriques Salido, “Caracterização da língua em EGC”, HEGC Coimbra.
18 -Futuro imemorial, op. cit.

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