quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Maratona Poética - chegam agora Nicolas Boileau,José Saramago, Josep Anton Vidal e Hélia Correia. Ah, e vem também o José Jorge Letria.

Nicolas Boileau-Despréaux

(Paris, 1636 – 1711)

A ARTE DE ESCREVER
(fragmento)

Há certos espíritos cujos sombrios pensamentos São como nuvem espessa, sempre emaranhados, O dia da razão não saberia atravessá-la.
Antes, pois, de escrever, aprendam a pensar.
Conforme a nossa ideia é mais ou menos escura Assim a expressão, ou menos nítida ou mais pura.
O que se concebe bem exprime-se claramente, E as palavras para o dizer chegam facilmente.
(...)
Gosto mais dum riacho que sobre a macia areia Num prado cheio de flores lentamente passeia, Do que duma torrente transbordante, tempestuosa, Correndo cheia de pedras, em terreno lamacento.
Acelerem lentamente e sem perder coragem, Vinte vezes empreendam a vossa obra:
Limpem-na sem cessar e tornem a limpá-la; Acrescentem algumas vezes mas outras eliminem.

("Art Poétique", 1674)





José Saramago

(Azinhaga, Golegã,  1922 — Tías, Lanzarote, 2010)





ARTE POÉTICA

Vem de quê o poema? De quanto serve
A traçar a esquadria da semente:
Flor ou erva, floresta e fruto.
Mas avançar um pé não é fazer jornada,
Nem pintura será a cor que não se inscreve
Em acerto rigoroso e harmonia.
Amor, se o há, com pouco se conforma
Se, por lazeres de alma acompanhada,
Do corpo lhe bastar a presciência.

Não se esquece o poema, não se adia,
Se o corpo da palavra for moldado
Em ritmo, segurança e consciência.

(Os Poemas Possíveis)

______________________



Josep Anton Vidal

(Barcelona, 1945 )

MOT A MOT

Veus l'horitzó i dius lluny, sents l'aire i dius presència,
sents la pluja i dius vida; veus la mar, dius remor,
veus els ulls d'un infant i dius tendresa,
veus la dona que infanta i dius dolor i amor, i dius misteri;
veus l'home i dius paraula, veus el pa i dius suor,
sents el vol d'un insecte i dius silenci,
mires els ulls del vell i dius record.
Veus els camins que han obert les petjades
i dius somnis i afanys i llibertat...
Veus el cel i dius tot i inabastable,
veus la volta estelada de la nit
i dius inconegut, dius infinit,
i dius immensitat, etern, petit...
Sents que et batega el cor i dius esforç,
dius coratge, dius lluita i ideals...
Et veus sol, i abatut, i miserable,
i dius jo, i dius tu, i dius nosaltres...
I veus les ombres créixer en el ponent del dia
i dius temps, i dius mort.

Així, mot rere mot, neix el poema
–allunyada presència, sorda remor de vida–,
il•lusió fugaç d'un món travat i fet,
un univers complet –i irreal, tanmateix–
on cada mot ocupa - vençut i dòcil, pulcre -
el lloc que li pertoca en un ordre aparent...

[La tendresa, l'amor, el dolor i el misteri,
el treball, la paraula, el silenci, el record,
els somnis i els afanys, la llibertat.
I el tot, inabastable. I el plural, impossible,
del jo, del tu, de l'altre.
I l'esforç obstinat, les idees, la història
–tanta sang, tants deliris, tants i tants crims, tants plors,
tantes vides desfetes per somnis miserables,
tants reis i tants messies, tants profetes i augurs,
tantes fes, tantes pors, tanta i tanta pregària,
tantes paraules buides, tants destins, tans amors,
tants camins que s'encreuen i tanta solitud,
tants savis, tants poetes, tants senyors i tants déus–]

...per teixir i desteixir sentits contra l'absurd,
per merèixer aquest temps d'atzar que en diem vida,
per ofegar el dolor de ser com som
–mesquins, inconsistents, fràgils, impurs–
i guanyar, mot a mot, la dignitat de viure.

PALAVRA A PALAVRA
(versão em português de Carlos Loures)

Fitas o horizonte e dizes longe, aspiras o ar e dizes presença,
sentes a chuva e dizes vida; vês o mar, dizes rumor,
vês os olhos de uma criança e dizes ternura,
vês a mulher parir
e dizes dor e amor, e dizes mistério;
vês o homem e dizes palavra, vês o pão e dizes suor,
ouves o voo do insecto e dizes silêncio,
fitas os olhos de um velho e dizes recordação.
Vês os caminhos abertos pelos passos
e dizes sonhos e desejos e liberdade…
Vês o céu e dizes todo e inatingível,
vês a abóbada estrelada da noite
e dizes ignorado, dizes infinito,
e dizes imensidão, eterno, pequeno…
Ouves bater o teu coração e dizes esforço,
dizes coragem, luta e ideais…
Vês-te só, abatido e miserável,
e dizes eu, e dizes tu e dizes nós…
E vês as sombras crescer ao pôr-do-sol
e dizes tempo e dizes morte.

Assim, de palavra em palavra, nasce o poema
– longínqua presença, surdo rumor de vida –
fugaz ilusão de um mundo feito e acabado,
um universo completo – e contudo irreal –
no qual cada palavra ocupa - vencida e dócil
o lugar que lhe cabe numa ordem aparente…

(A ternura, o amor, a dor e o mistério,
o trabalho, a palavra, o silêncio, a recordação,
os sonhos e os anseios, a liberdade.
E o todo, inatingível. E o plural, impossível,
do eu, do tu, do outro.
E o esforço obstinado, as ideias, a história
– tanto sangue, tantas quimeras, tantos e tantos crimes, tanto pranto,
tantas vidas desfeitas por sonhos miseráveis,
tantos reis e tantos messias, tantos profetas e augures,
tantas fés, tantos medos, tanta e tanta prece,
tantas palavras vazias, tantos destinos, tantos amores,
tantos caminhos que se cruzam e tanta solidão,
tantos sábios, tantos poetas, tantos senhores e tantos deuses.)

… para tecer e destecer sentidos contra o absurdo,
para merecer este tempo de acaso a que chamamos vida
para afogar a dor de ser como somos
– mesquinhos, inconsistentes, cobardes, impuros –
e ganhar, palavra a palavra, a dignidade de viver.
___________________



Hélia Correia


(Lisboa, 1949)


ARTE POÉTICA

Que o poema tenha carne
ossos vísceras destino
que seja pedra e alarme
ou mãos sujas de menino.
Que venha corpo e amante
e de amante seja irmão
que seja urgente e instante
como um instante de pão.

Só assim será poema
só assim terá razão
só assim te vale a pena
passá-lo de mão em mão.

Que seja rua ou ternura
tempestade ou manhã clara
seja arado e aventura
fábrica terra e seara.

Que traga rugas e vinho
berços máquinas luar
que faça um barco de pinho
e deite as armas ao mar.

Só assim será poema
só assim terá razão
só assim te vale a pena
passá-lo de mão em mão.

Com música de sua autoria, José Jorge Letria canta este poema de Hélia Correia no Coliseu de Lisboa em 2009



E às três horas, Abu Tamman traz consigo Adília Lopes, Manuel Maria e Florbela Espanca (com o Luís Represas)

Sem comentários:

Enviar um comentário