quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Maratona Poética - O Fernando Correia da Silva, traz dois amigos - o Carlos Pena filho e o José Luís Peixoto.


Fernando Correia da Silva
(Lisboa, 1931)
ADUNAR


Adunar na vertical é transformar o instinto em razão e esta naquele.
É conseguirmos ver o Invisível.
É usarmos de infravermelhos para localizar o Monstro agora diluído em estruturas canibais, omnipotência, omnipresença.
É sabermos detectar a tempo as suas teias e evitar nelas pousar.
É rasgarmos as suas máscaras, sejam elas lotes de acções ou abertura de caça ao preto e ao cigano.
É darmos valor à vida humana, em vez do preço que ele pretende atribuir-lhe.
É sermos indiferentes à diferença entre irmãos, homens que todos somos.
É não deixarmos que ele converta as nossas vidas num andar solitário por entre a gente.
É não deixarmos que ele transforme os homens em colónias de formigas.
É conseguirmos pôr no Soweto um pianista japonês a emocionar a assistência com um nocturno de Chopin.
É não deixarmos que tantos morram à fome enquanto permanecem terras férteis em pousio e há trigo acumulado nos celeiros.
É não consentirmos que as máquinas tomadas pelo Monstro nos deixem com a alma em desarrimo.
É não deixarmos que ele transforme o planeta em esgoto a céu aberto.
É não aceitarmos as gorjetas que ele oferece para olharmos para o outro lado.
É não deixarmos que nos atire para a lixeira.
É não consentirmos que o Direito Comercial lace, aperte, esmague e devore os Direitos do Homem.
É arrimar-nos a um tronco largo quando a jibóia ataca, comprimento ela não tem para laçar-nos juntamente com a árvore.
É puxarmos da catana e retalhá-la se ela insistir no ataque.
É dinamitarmos a digestão antropofágica do Labirinto.
É espantarmos os disciplinados cumpridores de ordens, os bandos de corvos sempre à espera da sua quota-parte de carniça.
É ensinarmos as gaivotas a cagar na cabeça de arrogantes e presunçosos.
É darmos um banho de lixívia aos engravatados distribuidores de paninhos e água quente.
É cravarmos malaguetas no umbigo do Dr. Prepotência, e outras, como flechas, no cu que o Dr. Banqueiro tem como cofre.
É nunca ficarmos de costas para os traidores que há na vida.
É estarmos sempre atentos às manobras do Piloto que elegemos.
É sabermos transformar as espadas em arados e as metralhadoras em berbequins.
É levarmos os mansos a possuir a terra.
É consolarmos os que choram.
É saciarmos os que têm fome e sede de justiça.
É acreditarmos que, embora Invisível, será ainda possível empurrar o génio do Santo Lucro para dentro da garrafa, como outrora acreditámos que era possível vencer o Hitler, mesmo quando todos, até os nossos filhos, garantiam que ele já era o rei do mundo.
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Carlos Pena Filho


(Recife, 1929 – 1960)


PARA FAZER UM SONETO



Tome um pouco de azul, se a tarde é clara,
e espere pelo instante ocasional.
Nesse curto intervalo, Deus prepara
e lhe oferta a palavra inicial.

Aí, adote uma atitude avara:
se você preferir a cor local,
não use mais que o sol de sua cara
e um pedaço de fundo de quintal.

Se não, procure a cinza e essa vagueza
das lembranças da infância, e não se apresse;
antes, deixe levá-lo a correnteza.

Mas ao chegar ao ponto em que se tece
dentro da escuridão a vã certeza,
ponha tudo de lado e então comece.

(O tempo da busca, 1952)


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José Luís Peixoto
(Galveias,  Ponte de Sôr, 1974)
 
ARTE POÉTICA




O poema não tem mais que o som do seu sentido,
a letra p não é a primeira letra da palavra poema,
o poema é esculpido de sentidos e essa é a sua forma,
poema não se lê poema, lê-se pão ou flor, lê-se erva
fresca e os teus lábios, lê-se sorriso estendido em mil
árvores ou céu de punhais, ameaça, lê-se medo e procura
de cegos, lê-se mão de criança ou tu, mãe, que dormes
e me fizeste nascer de ti para ser palavras que não
se escrevem, lê-se país e mar e céu esquecido e
memória, lê-se silêncio, sim, tantas vezes, poema lê-se silêncio,
lugar que não se diz e que significa, silêncio do teu
olhar de doce menina, silêncio ao domingo entre as conversas,
silêncio depois de um beijo ou de uma flor desmedida, silêncio
de ti, pai, que morreste em tudo para só existires nesse poema
calado, quem o pode negar?, que escreves sempre e sempre, em
segredo, dentro de mim e dentro de todos os que te sofrem.
o poema não é esta caneta de tinta preta, não é esta voz,
a letra p não é a primeira letra da palavra poema,
o poema é quando eu podia dormir até tarde nas férias
do verão e o sol entrava pela janela, o poema é onde eu
fui feliz e onde eu morri tanto, o poema é quando eu não
conhecia a palavra poema, quando eu não conhecia a
letra p e comia torradas feitas no lume da cozinha do
quintal, o poema é aqui, quando levanto o olhar do papel
e deixo as minhas mãos tocarem-te, quando sei, sem rimas
e sem metáforas, que te amo, o poema será quando as crianças
e os pássaros se rebelarem e, até lá, irá sendo sempre e tudo.
o poema sabe, o poema conhece-se e, a si próprio, nunca se chama
poema, a si próprio, nunca se escreve com p, o poema dentro de
si é perfume e é fumo, é um menino que corre num pomar para
abraçar o seu pai, é a exaustão e a liberdade sentida, é tudo
o que quero aprender se o que quero aprender é tudo,
é o teu olhar e o que imagino dele, é solidão e arrependimento,
não são bibliotecas a arder de versos contados porque isso são
bibliotecas a arder de versos contados e não é o poema, não é a
raiz de uma palavra que julgamos conhecer porque só podemos
conhecer o que possuímos e não possuímos nada, não é um
torrão de terra a cantar hinos e a estender muralhas entre
os versos e o mundo, o poema não é a palavra poema
porque a palavra poema é uma palavra, o poema é a
carne salgada por dentro, é um olhar perdido na noite sobre
os telhados na hora em que todos dormem, é a última
lembrança de um afogado, é um pesadelo, uma angústia, esperança.
o poema não tem estrofes, tem corpo, o poema não tem versos,
tem sangue, o poema não se escreve com letras, escreve-se
com grãos de areia e beijos, pétalas e momentos, gritos e
incertezas, a letra p não é a primeira letra da palavra poema,
a palavra poema existe para não ser escrita como eu existo
para não ser escrito, para não ser entendido, nem sequer por
mim próprio, ainda que o meu sentido esteja em todos os lugares
onde sou, o poema sou eu, as minhas mãos nos teus cabelos,
o poema é o meu rosto, que não vejo, e que existe porque me
olhas, o poema é o teu rosto, eu, eu não sei escrever a
palavra poema, eu, eu só sei escrever o seu sentido.

(A Criança em Ruínas)


Às onze chegam  o Casimiro de Brito, a Augusta Clara de Matos e o Celso Emilio Ferreiro

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