sexta-feira, 3 de setembro de 2010
Novas Viagens na Minha Terra
Manuela Degerine
Capítulo XCVIII
Vigésima terceira etapa: em Pontevedra (continuação III)
Devera ter posto tampões nos ouvidos. Com tantos roncos uníssonos ou dissonantes, sincrónicos ou alternados, piano ou forte, parece que me encontro num auditório de música contemporânea. E não costumo dormir nos concertos...
Também abafo com calor. Por nos encontrarmos no mês de Maio, trouxe o saco-cama dos quinze graus; ora, desde que saí de Coimbra, senti cada noite frio, excepto hoje e em Vilarinho, onde a subida de temperatura também resultou da acumulação de corpos a 37° num espaço reduzido.
Às cinco horas oiço o primeiro ranger de plásticos. Embora ninguém acenda as luzes, para não incomodar quem dorme, como poucos dormem, apenas os mais surdos ou previdentes, o coro dos sacos de plástico sobrepõe-se de imediato aos últimos roncos.
A dois beliches de distância do meu, avisto uma rapariga chinesa e, mais longe, dispersos pela camarata, os outros três peregrinos. Inquiro a que horas chegaram: às nove e meia. Naquela barafunda nem os vi... Hoje despacham as bagagens para Padrón, o que lhes permitirá percorrer duas etapas; caminhar com ou sem mochila não exige, nem de perto nem de longe, o mesmo esforço. Um dos rapazes mostra-me a bela vara de eucalipto:
- Como as vossas!
Nesta viagem não voltaremos a encontrá-los, pois chegarão a Santiago um dia antes de nós. Desejamos uns aos outros boas aventuras.
Noto que uma das chinesas mira os meus pés. Sigo o olhar dela. Calcei um croc verde (meu) e... outro azul! Pois... Devera tê-los suspendido nas grades. Corro aos beliches, murmuro, várias vezes, ao ouvido de quantos ali se activam, perdi meu croc, alguém o viu, alguém se queixou, alguém ouviu falar disto, em espanhol, em francês, em inglês, vários fixam em silêncio os meus pés, já tem dois, trará um suplente, como os pneus, não perco tempo em explicações, quero reconstituir o par, dispenso mais esta bizarria, detenho-me no corredor, junto do meu beliche, quem o levou, se ainda não partiu, aqui voltará, atenta às mulheres que vão e vêm, aproxima-se enfim uma, deve calçar o 38, como eu... e até fala francês; o que facilita as explicações. Nesta obscuridade, mal acordada, não reparou que traz um croc de cada cor. Sem verificar, cede-me o do pé direito e aceita o que lhe dou.
Está a chover com força. Pensávamos aproveitar a manhã para conhecer Pontevedra porém assim, com esta chuva, mais as mochilas... não. (No que me diz respeito, voltarei aqui como turista; as igrejas e museus fazem parte de outra viagem.) Hoje caminhamos metade dos quilómetros, não é urgente partirmos de imediato. E pode ser que, entretanto, pare de chover.
Tomamos o pequeno-almoço com as maiores delongas enquanto os outros peregrinos vão partindo.
Antes de se despedir, até logo, em Caldas de Reis, a veneziana pergunta:
- Precisas de sacos de plástico? Aborrece-me pôr os das compras de ontem no lixo.
- Podes dar-mos.
Entrega-me mais dois minúsculos origami. (Guardo-os, claro: sem os desfazer.)
Quando volto à camarata para vestir a roupa molhada e recuperar as bagagens, descubro um campo de batalha após o saque... Só faltam os cadáveres. E até, quem sabe, no meio desta confusão, talvez apareça algum. Quase todos arrumaram as mochilas às escuras, junto de quem fazia o mesmo, para não incomodar os que, com tampões nos ouvidos, ainda dormiam, por conseguinte, inevitavelmente, nesta imensa balbúrdia, uns e outros esqueceram-se de variados pertences no chão, em cima das camas, pendurados nos beliches, camisolas, livros, peúgas, chinelos, cadernos, rolos de papel, caixas de tampões higiénicos, canetas e mais canetas, para além de tudo quanto não foi esquecido mas abandonado, por excesso peso, sem chegar a ir para o lixo, por má consciência: bolos, fruta, bolachas, batatas fritas, sumos de fruta...
Surge a mulher das limpezas. Lança, com maus modos, tudo para dentro de imensos sacos de plástico: os lençóis fornecidos pelo albergue e o resto, sem distinção nem separação. Vai vociferando:
- Porcos! Porcos! Estou aqui para limpar, não sou criada deles! Há alguns que telefonam, deixaram isto e aquilo, era o que faltava, o albergue não é armazém de objectos perdidos: vai tudo para o lixo. Peregrinos?... Esta gente não é peregrina. Viu alguém rezar?
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