segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Novas Viagens na Minha Terra


Manuela Degerine

Capítulo CXIII

Vigésima sexta etapa: de Padrón a Santiago de Compostela

Saímos do albergue já depois das oito horas, após demorado, copioso pequeno-almoço – precisamos de aligeirar as mochilas – e narrativa da peripécia do telemóvel, com os risos e comentários anexos, a conhecidos e desconhecidos, entre os quais a família franco-alemã, os estudantes, a rapariga espanhola, uma outra rapariga, ainda ofendida, a quem a dona do telemóvel acusara, ouvindo o extraviado tocar no beliche dela (era ao lado, no de Sérgio).

Hoje é o dia dezasseis de Maio de 2010. Parece-me ter saído há meses de Tomar – faz exactamente duas semanas. Resta-me percorrer uma etapa de vinte e dois quilómetros.

Se dependesse de mim, prolongava a caminhada. Muitos peregrinos continuam até Finisterra, onde é tradição queimarem a roupa: um ritual de passagem a outra vida. (Sérgio, que só parte de hoje a oito dias, projecta prosseguir a viagem.) Porém eu preciso de regressar a Lisboa.

Até há cerca de seis anos a minha vida decorreu sem desgostos nem obstáculos. E, de súbito, encontrei-me num inferno. Nos últimos vinte meses, à medida que a situação se agravava, o que me permitia adormecer, quando adormecia, era a imagem deste Caminho. Sim, o presente é podre mas daqui por um ano, daqui por seis meses, daqui por três meses: estou a caminhar. Podemos dizer que, graças a Santiago, consegui sobreviver. E não foi pequeno milagre. A princípio, há mais de dois anos, pensava partir de Le-Puy-en-Velay, depois compreendi que me sentia motivada para percorrer o caminho português, embora sem dúvida este seja mais difícil, não dispondo de albergues nem caminhos sinalizados e, ainda menos, adaptados à caminhada, resultando disto uma menor frequentação, com as suas inevitáveis consequências.

Agora estou a chegar a Santiago. Sinto-me feliz por levar esta aventura a bom termo. Contudo...

A etapa tem o sabor amargo de uma despedida. Amargo e, ainda assim, agradável; uma pastilha de genciana. Todos os dias, à medida que avançávamos, íamos comentando: só faltam quinze quilómetros, dez, oito... Hoje notarei cá para mim: andei um quilómetro, seis quilómetros, onze... Com pena. Como se diz em francês: avanço às arrecuas. (Ou quase.) Não me apetece chegar a Santiago de Compostela.

Não caminhamos propriamente no meio da multidão, fazemos todavia parte de um fluxo ininterrupto de peregrinos. Se nos sentamos um instante, vemos desfilar dezenas de andarilhos, na maioria espanhóis, singulares ou colectivos, casais, famílias (pai, mãe, filhos, avós), grupos mais numerosos... Como só percorrem esta etapa, não trazem mochilas nem equipamento especial. Fazem um passeio de domingo – com ou sem devoção.

Passamos ao lado da igreja e do cemitério de Iria Flavia. (Iria Flavia foi cidade romana e, mais tarde, a diocese onde encontraram o túmulo do apóstolo. Em Iria Flávia se situa hoje a Fundação Camilo José Cela, que conserva o espólio do escritor: biblioteca, manuscritos e correspondência.). Atravessamos em seguida diversas aldeias, Pazos, Cámbelas, Rueiro, Anteportas, caminhando por vezes debaixo de vinha suspensa, vendo sucessivas casas de pedra, moradias brancas espalhadas no verde, muitas árvores de fruto, hortas com couve galega – claro – e as primeiras culturas do ano: favas e ervilhas. Nesta manhã de domingo, com sol e frescura, há nos ares uma leveza e uma paz nos campos: apetece permanecer aqui. Não, não quero chegar a Santiago de Compostela.

Entramos em Escravitude. Dispomo-nos a visitar a igreja, vendo uma fachada barroca, sendo domingo de manhã; encontra-se porém encerrada. Do terraço avistamos um cruzeiro e as serras circundantes. Logo à tarde hão-de falar-me das águas de Escravitude... Neste momento ignoro que existe uma fonte milagrosa; a qual portanto me passa despercebida. (O roteiro não é um guia turístico.)

Ziguezagueamos por prados, campos, pedaços de pinhal, caminhando com frequência à beira de pequenas estradas e passando, aqui e além, nas aldeias, debaixo de vinha suspensa. Subimos, descemos. Deparamos com o cruzeiro em Rua de Francos, uma imagem gótica de Cristo na cruz; a mais impressionante que me lembro de encontrar neste Caminho.

Subimos de novo através de uma mata, atravessamos Oseve e depois Rio Tinto. Onde nos sentamos. Temos à frente o rio com um açude, à esquerda uma casa de pedra (com um banco exterior de pedra), um espigueiro e uma ponte medieval. A água, as árvores, as pedras... Apetece-me ficar.

De vez em quando, lemos um discreto cartaz, pregado aqui num poste, além num tronco: “Peregrino manten limpo o teu camiño”. (De facto, como ontem, caminhantes pouco respeitosos lançam para o chão as latas e outras embalagens.)

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