Certa manhã, chegou-me a casa um Kindle, o modernaço livro electrónico que certa propaganda garante estar prestes a condenar à obsolescência os livros de papel a que nos acostumámos.
Retirá-lo da caixa foi já um prenúncio do que se seguiria. Como no passado, quando tinha a pungente consciência da expectativa dos adultos, a criança fingia um entusiasmo inexistente enquanto desembrulhava um presente que não lhe agradava. Mas desta vez fingia-o para si mesma.
A miserável superfície branca, de plástico, a ridícula espessura da coisa, raquítica, o fundo metálico, frio ao tacto. A escandalosa ausência de cheiro, nada, nem um vestígio de humidade, de tinta, de papel manuseado por mãos suadas.
Chega rodeado de anúncios que lhe gabam a leveza, a capacidade de albergar nas entranhas, comprimidas em minúsculos corpos de “chips” e outras matérias insondáveis, milhares e milhares de obras. E garante-me que a todas posso transportar sem esforço, sabendo-as sempre ali à mão, resgatáveis assim que eu as solicitar. Mas quem disse que segurar um livro pesado alguma vez foi um incómodo? Se nos agrada, se nos seduz, o seu corpo volumoso é uma promessa de prazer perdurável, é uma jura de felicidade prolongada. Não infinita, Deus nos livre da felicidade infinita, mas prolongada.
Experimentarei o engenho, escolherei três ou quatro obras de entre as inúmeras que aguardam por leitores nos arquivos online, e tentarei ler, nos próximos dias, em doses profilácticas, como quem experimenta um remédio que, sendo de gosto amargo, nos garante o médico que só nos fará bem.
Leio algumas páginas, a que não sei se continuar a chamar “páginas”, e não faço ideia se li muito ou pouco em relação à totalidade do livro. Pousar a marca na página onde estou, fechar o livro e observar a lombada é impossível. Descubro, afinal, que no inferior da página se assinala a percentagem da obra lida até ao momento: 19%. Li 19% desta obra, faltam-me, portanto, 81% e a coisa posta assim, na frieza das percentagens, desanima-me. Mas há vantagens, claro, então não há? Já não terei de dizer “ando a ler o Guerra e Paz”, não. A partir de agora poderei dizer “li, até ao momento, 34% do Guerra e Paz”, o que possibilitará de imediato ao meu interlocutor concluir que:
a) é respeitável a minha determinação,
b) mas não está ainda de todo clara a minha capacidade de chegar à última página (para chamar-lhe de alguma forma).
Virar a página reduz-se agora a carregar num botão. O acesso à loja online está de tal modo facilitado que onde quer que eu esteja, seja qual for a hora do dia ou da noite, poderei caprichosamente ordenar aos senhores da loja que me enviem, pelos ares, o livro que me apetecer, tenha eu saldo no cartão de crédito para tanto, e esteja o livro convenientemente convertido para este formato. Qual livraria, qual carteiro, qual espera, qual carapuça. Queres? É teu agora mesmo.
Há outras vantagens, evidentemente. A que mais me agradou é a incorporação de um dicionário que permite consultar de imediato o significado de qualquer vocábulo que conste na obra. Desde que esteja na língua inglesa, pelo menos para já.
Vá lá, reconheçamos que foi feito algum esforço para agradar aos leitores. Prova disso é que é possível sublinhar e mesmo escrever notas. Constato, porém, que escrever é quase impossível porque requer o uso de um teclado com letrinhas minúsculas, concebidas para dedos subdesenvolvidos, sem polpa, dedinhos tão de plástico quanto o Kindle no qual escrevem. Sublinhar é enfadonho e irritante porque, tendo dispensado a intervenção da caneta, ou de algo que se lhe assemelhe, somos obrigados a domar com perícia um temperamental botão quadrado, com o qual devemos realçar o texto que nos interessa, sem perder palavra pelo caminho. E com tanto esforço, esquecemo-nos da ideia que esteve na origem desse impulso de sublinhar ou tomar notas.
O futuro da leitura será, porventura, mais parecido com os “e-Livros” do que com os livros que conhecemos até agora, e a um leitor desse futuro este meu lamento parecerá tão incompreensível quanto para nós o é o relato de um cidadão de Uruk que lastime o abandono das tabuinhas de argila. Pensando bem, este Kindle tem qualquer coisa de tabuinha dessas, uma tabuinha que tivesse dado um salto Kubrikiano, o salto do osso para a nave espacial, nessa elipse compactando milénios de evolução. E assim reconfortada meto o Kindle na gaveta, com a ideia de deixá-lo de herança ao meu rapaz quando ele aprender a ler, e volto aos calhamaços que, benditos sejam, ainda me hão-de fazer alguma tendinite.
Por mais esforço que tivesse feito, não consegui identificar o autor(a) deste tão interessante texto. Só no fim percebi que pertence a alguém dos nossos 19%, percentagem que começa a aparece por todo o lado. Irá tornar-se numa percentagem cabalística?
ResponderEliminarE o cheiro dos livros? Dos novos,dos velhos, dos cheios de pó, dos a desfazerem-se, dos já roídos pelo bicho da prata? E a cor do papel já a começar a envelhecer? E quando tínhamos que cortar páginas?
ResponderEliminarNão quero ser o velho do Restelo mas....
Este texto é da Carla! Desde que ela me apresentou a "Fernandinha lá da rua a equilibrar-se nos sapatos de salto alto" que eu fiquei com a marca. E com o "banquinho que ela usava no segundo piso das escadas para descansar quando estava grávida" Carla, escreve como só ela.
ResponderEliminarLuis, creio que não era a fernandinha mas a fatinha, ou estarei enganado?
ResponderEliminarCarla, o teu último capítulo diz tudo. Quer queiramos quer não, o livro, essa maravilha de séculos vai acabar, como acaba tudo o que tem de dar lugar ao novo. Até o amor se lê, se faz, se entende e se manipula de forma completamente diferente.
Era a Fatinha...Adão, tu tambem foste apresentado.A Carla, tem a capacidade de "apanhar" com duas frases. as personagens. Com a mãe,afogueada, minha "perdida"...matei-me a rir.
ResponderEliminarFui escrever um artigo e,mal chego aqui já não percebo nada desta conversa.Assim, só posso alinhar com a Clara: eu quero os meus livros de papel. Para qaue é que mandei fazer mais estantes e fui alugar a casa da porteira?
ResponderEliminarAdão, hoje estás para aí com umas heresias que eu não compartilho.
ResponderEliminarVou remar contra a maré. Estranho objecto, mas no entanto gosto! Gostarei mais quando for barato e acessível ao bolso de quase todos. Gostarei ainda mais quando puder ler mais e mais livros (é mais fácil continuar a chamá-los assim). Gostarei ainda porque ele de alguma forma ele abre a possibilidade a novos autores sem os riscos actuais. Não é assim, Carlos?
ResponderEliminarA meu ver isto não mata o livro. É um suporte diverso que traz um conteúdo específico. Também amava o vinil, e quando o CD chegou tinha amigos que odiaram. No Jornal do Brasil, um crítico de jazz dizia-me que o CD alterava o verdadeiro som já que limpava todos os ruídos...
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ResponderEliminarDepois de ter escrito isso lembrei-me da história de uma menina de 9 anos que tinha estudado até agora numa escola alternativa, rodeada de árvores. Este ano a menina foi colocada numa escola igual a todas as outras. As árvores estão rodeadas de uma rede, os meninos bricam com telemóveis e a menina chorando pediu ao pai um papel, desenhou um circulo, dividiu-o ao meio e disse: eu sinto-me assim, tiraram uma metade de mim. Nessa metade estava o coração. E acrescentou muito indignada: "a escola está a roubar a minha imaginação, pai"|
ResponderEliminarTudo que esteja divorciado da natureza faz este estrago.
Agora sinto um nó no estomago, um daqueles que consigo identificar como medo. Todos estes inventos podem ser muito bons se...
Tenho estado "fora". Claro, Ethel, que o Kindle não mata o livro em suporte de papel. Como muito bem disse o Umberto Eco, só quando se descobrir um suporte estável alternativo, o livro impresso estará em perigo. Veja-se que, se tivermos os conhecimentos indispensáveis, podemos ler códices com mil anos e incunábulos com quinhentos. Há vinte ou trinta anos apareceram uns «livros áudio« e disse-se que ia ser a morte do livro. Pois bem, hoje em dia não há aparelhagens no mercado que permitam ler esses "livros"; o mesmo já vimos acontecer com outras inovações. O texto da Carla é exemplar - não é qualquer kindle que rompe o afecto e a relação que estabelecemos com os livros. Talvez isto já não se passe com os mais novos, mas não escondo que uma certa volúpia se apodera de mim ao tactear a textura do papel, ao procurar, esfregando-o entre os polegares, calcular-lhe a gramagem, o cheiro da tinta fresca... não há, por enquanto, inovação electrónica que provoque esta relação tão íntima.
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