Adão Cruz
Quando cheguei à Guiné, uma das primeiras preocupações que tive foi começar a conhecer as pessoas e os costumes. Para além de ser uma tarefa aliciante, era a melhor forma de me libertar do medo da guerra e da perspectiva pouco animadora de um regresso encaixotado.
Conhecer um povo, ainda que pequeno, originário de quarenta grupos étnicos diferentes, fragmentado e encurralado física e psicologicamente em zonas estanques, por imposição de uma violenta guerra de guerrilha, não era fácil, e a desvirtuação constituía um perigo possível. Tentei iniciar a penetração neste novo mundo através da abertura que a minha missão de médico facultava e facilitava. Com o tempo as janelas foram-se abrindo, e hoje revejo com alguma saudade o imenso painel de mil cores, esse mar de sensações e vivências que nenhuma memória pode esquecer.
As mulheres de Bigene e não só de Bigene pariam no mesmo local onde defecavam, uma pequena cerca de esteiras nas traseiras da tabanca, longe da vista das pessoas e sobretudo dos homens, como se o acto de parir fosse indigno e imprudente, obrigando ao mais submisso recato. Como se não bastasse, uns dias antes da data prevista para o parto atulhavam a vagina com bosta de vaca, a qual sofria pútridas fermentações que exalavam um cheiro nauseabundo. Os tétanos, quer da mãe quer do recém-nascido eram graves e frequentes, soube eu mais tarde.
Neste primeiro contacto fiquei boquiaberto e decidi actuar. Não seria difícil imaginar a resistência destas pessoas a qualquer tipo de reforma dos costumes, se não fosse tido em conta um facto importante. Ao contrário do que se diz e do que se pensa, os negros, sejam eles homens ou mulheres, são muito espertos, nada ficando a dever aos brancos e superando-os em muitas coisas, dentro da mesma escala de cultura. Estou disposto a comprová-lo através de exemplos sérios nascidos da minha experiência.
Só assim foi possível a rápida aceitação e compreensão dos esclarecimentos que fiz na tabanca, acerca de higiene e infecções, acerca do papel da mãe, da dignidade do parto e das vantagens de este ser efectuado na nossa enfermaria, ainda que modesta e minúscula.
Não demorou muito tempo a aparecer a primeira parturiente. Era uma linda mulher grávida de termo que não falava nada que se percebesse. Não sou capaz de precisar, nesta altura, a etnia, mas lembro-me que nem os outros negros entendiam o seu dialecto. Mas o seu sorriso, apesar das dores, era tão aberto e confiante que não precisávamos de melhor forma de comunicação e entendimento. Até os olhos do meu enfermeiro Pimentinha, electricista de profissão, brilharam de entusiasmo, entusiasmo que o levou a ler de fio a pavio a minha sebenta de obstetrícia, e a transformar-se em pouco tempo num habilidoso parteiro e carinhoso puericultor.
Nas minhas mãos um pouco trémulas eu segurava o fruto do primeiro parto que assisti na Guiné. Era um belo rapazinho, que apesar da pobreza alimentar daquela gente, nasceu bem nutrido e de uma cor rosa-marfim. Os negros nascem brancos, como se sabe. Uma deliciosa ironia anti-racista da natureza.
Embora as nossas dificuldades logísticas e económicas fossem grandes, lá consegui oferecer-lhe o alimento, sob a forma de leite condensado, único possível, indispensável aos primeiros tempos de aleitamento, pois a mãe parecia ter esgotado todas as reservas das suas entranhas ao gerá-lo de maneira tão eutrófica e perfeita.
Uma semana após o nascimento, vem ter comigo o Chefe de Posto e diz-me sorridente: “doutor, vou dar-lhe uma linda notícia, que a mim, pessoalmente, me enterneceu. A mãe daquele catraio…aquele primeiro parto que o doutor fez, lembra-se? A mãe veio registá-lo há dias, oficialmente, com o nome de “Adão Doutor”.
quinta-feira, 2 de setembro de 2010
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O conto esrá incompleto. Esperamos que o Carlos corrija a situação
ResponderEliminarAntes da correcção, segredo-te baixinho que sei que Adão Doutor, é hoje o poeta da vila onde mora. Para além do amor da mãe, herdou a sensibilidade do homem que o ajudou a nascer. Na rua se lhe perguntam de onde vem esse nome, sorri como a mãe e mostra uma foto antiga do médico Adão Cruz.
ResponderEliminarAs histórias da nossa juventude tão estupidamente sacrificada nesta guerra, como são todas as juventudes em todas as guerras, dão-nos, ao menos o consolo de ouvirmos e lermos relatos tão humanos e comoventes como este, Adão Doutor. É que eu, também, sou dessa geração e fui a muitas partidas. Felizmente, também, a muitos regressos. Obrigada.
ResponderEliminarEstás a falar a sério? Ou é poema? É que eu soube que ele é vivo, através de umas pessoas de S. João da Madeira que o conheciam.
ResponderEliminarAgora já está corrigido.
ResponderEliminarObrigado Ethel e Augusta
Que bela história de vida! Assim se completa a missão dum médico na sociedade e não apenas através dos chorudos ordenados.
ResponderEliminarPaxiano, grande admirador
Ms uma vez obrigado Paxiano
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