quinta-feira, 30 de setembro de 2010

O quissange - Maria-Cecília Correia

(Colocado por Clara Castilho)



Que sei eu de quissanges, ou das suas leis? Nada…

“Morais” tinha um. Não que o usasse dentro de casa. Talvez para o caminho, talvez para o convívio com os amigos na hora da sesta, em qualquer sombra ali perto.

Uma conversa amiga e o quissange mudou de dono.

E agora, pensei, como vai “ele” aceitar as minhas mãos – outras mãos?

Uma outra conversa amiga: “Tu tens de ter paciência. Sou de outros mundos, mas gostaria de ter-te comigo. Até já te chamei cravo e tu não protestaste; estamos a caminho de nos entendermos”.

Fiz uma das minhas misturas: versos de Verlaine metidos numa canção corsa (ninguém sabe do atentado e, como diz uma lei consagrada “na Natureza tudo se transforma”). E o quissange anuiu como um cão de caça entregue para guia de cegos. Abençoado!

E assim convivíamos em horas longas, longas de minha doença.

- Pareces um cravo, dizia-lhe.

- Então sou um cravo, respondia amável.

E deixava-se ser cravo no quarto quente e abafado, nas tardes compridas e vazias. Deixava que eu me enganasse vezes e vezes até acertar:

Un vaste et tendre apaisement
Semble descendre du firmament…

E ele calava a saudade das fogueiras e das noites de festa; calava a sua saudade para que a minha fosse menor. Respondia nas minhas mãos menos escuras igual que nas do Morais: com fidelidade.

Podia tê-lo dado a outro Morais quando regressei, mas veio comigo. Foi ele que assim o quis. Um bom cão de cegos faria o mesmo: não abandonaria nunca quem dele precisasse.

(In Pretérito Presente, e.d., Lisboa, 1976)

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