quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Outras Gaivotas

Augusta Clara de Matos


Nunca me hei-de esquecer daquele passeio no mar do Algarve.

Fui eu que desafiei o Jorge para irmos mar adentro. Eu adoro o mar, ele também e tinha um pneumático a remos e um espírito temerário que não me é nada estranho.

Afastámo-nos da praia mas quem remava era ele porque eu, mal pegava nos remos, entrava em pião. O Jorge, ainda, se encheu de paciência mas, ao fim de cinco minutos a andar à roda, achou que era tempo de continuarmos o caminho. E lá fomos com ele aos comandos, aos remos.

As gaivotas, bem no cimo da falésia, olhavam-nos espantadíssimas e com um ar ameaçador de quem não está para tolerar semelhantes desmandos no seu território.

As gaivotas do Algarve não são como as de Lisboa, como as do Tejo. São ferozes. Olham-nos como intrusos: “Fora daqui!”. Mas que importância tinham? Estavam lá tão alto!

O mar era um deleite, uma calmaria. Aquela sensação de deslizar rente ao azul, mão de fora, mão molhada, alheia a tudo que não a imensidão sem fim em toda a volta. Tudo era azul, menos as ferozes gaivotas. Mas, ao fim de algum tempo, ficaram para trás.

Passava um ou outro barco e voltava-se ao silêncio, ao leve marulhar da água. Não havia vento, não havia ondas.

A minha cabeça ardia, esquecera-me do chapéu, mas a alma gozava as delícias do Polo Norte. Quanto tempo tinha passado desde que saíramos da praia? Quem se importava com isso? Vogávamos num pneumático como quem vai para a América. E não se chega à América dum dia para o outro.

Começaram a aparecer as grutas. Beleza tamanha! Refúgios de areia apenas iluminados de sol pelos feixes certeiros às aberturas da erosão. Grutas grandes, grutas pequenas. Grutas encantadas!

Deslizávamos felizes, ao sol, à sombra das grutas, rumo a outro continente.

Mas não há bem que sempre dure.

Tanto encantamento atirou-nos contra uma rocha e o barco ficou com um buraco, minúsculo, invisível mas por onde o ar se começou a escapar.

A que distância estávamos donde tínhamos partido? Sabíamos lá! O tempo fora-se, hora e meia, e a mansidão da água também.

As ondas subiam e desciam e nós só tínhamos um barco furado para voltar. O vento aliara-se ao mar e tornara-se nosso inimigo.

Não tínhamos outro remédio senão fazermo-nos ao caminho. A água dentro do barco ainda era pouca e tentaríamos pedir ajuda. Passaram alguns barcos a motor de regresso a terra. Mas iam cheios de turistas e pouco nos ligaram.

Continuámos heroicamente contra o vento, contra as ondas. Tínhamos que chegar, custasse o que custasse.

Um transatlântico passou por nós, míseras formigas ensopadas com a alegria perdida. Só já queríamos chegar vivos.

E as gaivotas, lá do alto, olharam de novo para nós, desdenhosas, arrogantes:”Bem feita! Agora arranjem-se!”. Com aquelas cabecinhas tortas, a mirarem-nos só com um olhinho e a lembrarem-me os pássaros do Hitchcock.

Não me lembro que alma caridosa nos atirou uma corda. Só me recordo de ter chegado à praia dentro duma banheira.

Vinha feliz, apesar de tudo, mas, ao desembarcar, olhando para as expressões dos rostos dos restantes elementos do nosso grupo, à espera sentados na areia, fiquei com a certeza de que nos teriam acolhido melhor se tivessemos morrido afogados.

4 comentários:

  1. Bem escrito, mas que arrepio! Eu que tenho um cagaço terrível da água. As gaivotas das Berlengas atacam mesmo e tentaram comigo.

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  2. E isto foi verídico, Adão. Por pouco não tinha morrido afogada. Coisas da juventude :)

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  3. Eu, de gaivotas, lembro-me de um dos livros do psicólogo Tinberg, que li muito nova e do estudo do comportamento animal.
    Outra experiência foi em Lagos, nas férias. Tenho que pôr tampões nos ouvidos para não cordar às 6 da manhã, com os gritos de suas excelências... Mas uma delas vinha poisar no muro à frente do meu apartamento, à hora do jantar, a um metro de distância. Experimentei dar-lhe um pouco de tudo - pão, maçã, carne e peixe. Bacalhau não gostou, já os camarões mamou-os todos! Um dos funcionários do local explicou-me: parece que elas vivem com o mesmo parceiro a vida toda.Um casal põs um ovo aqui num canteiro e para o proteger atacavam as pessoas quando estas passavam. Tivemos que deitar o ovo fora. E depois só ficou uma das aves, é esta que anda sempre por aqui sozinha." A foto da gaivota, com o mar ao longe, palmeira e uma rocha da praia de Dona Ana acompanha-me, desde então, como fundo do meu telemóvel. Podem ser mazinhas, mas são bonitas.

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  4. A voar são mais bonitas do que pousadas. Gosto muito de as ver em bando e tenho muitas fotografias, não tiradas por mim, das gaivotas do Tejo.

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