(Continuação)
Cena 4
Ódios e necessidades
(Reunião de senhoras a tomar chá)
Ciclorama laranja, camponeses trabalham em contra-luz)
Condessa de Ficalho (com um rosário) - Deus me perdoe, não posso mais com tanta miséria que se vê aí pelas ruas.
Condessa de Tarouca – É no que deu esta República: crimes, roubos e fome.
Berta Maia – Desculpem, minhas amigas. Porquê acusar sempre a República? A miséria vem de muito longe, das injustiças que a monarquia praticava.
Condessa de Ficalho– Minha querida Berta, sei que é difícil, mas pense um pouco. Quem fez Portugal? Quem conquistou? Quem derrotou hereges? Quem espalhou a fé e o império? Fomos nós.
Condessa de Tarouca – Não é natural que tanto esforço tenha compensação? Queria que distribuíssemos riquezas pelos labregos e pelos cobardes que não derramaram o sangue na faina heróica dos nossos antepassados? Coma! Coma!
Condessa de Ficalho– Onde é que já se viu isso? Queria que os filhos dispersassem a fortuna que os pais lhes deixavam?
Condessa de Tarouca – Que falta de sensatez, minha amiga.
Berta Maia – Deus diz-nos para olharmos para os pobres e infelizes, e para remediarmos as desigualdades deste mundo.
Condessa de Tarouca – e por isso nós fazemos estes chás de caridade.
Condessa de Ficalho– E o que fazem os republicanos, os bolcheviques, quando nós queremos ir por esse caminho?
O que fizeram ao Sidónio Pais que tinha criado a sopa para os pobres e que, abençoado por Deus, ia pelos hospitais confortar os doentes da pneumónica?
Abateram-no com um tiro, como se faz a um cão raivoso.
Condessa de Tarouca – Berta, você sabe que isso foi um crime. Mataram um santo, e um belo homem.
O seu marido, o comandante Carlos da Maia, esteve com o Sidónio...
Berta Maia – Sim, esteve com o Sidónio. Ele, o Machado Santos e outros. Por pouco tempo. A esperança que havia numa política nova, para fazer renascer Portugal, desvaneceu-se rapidamente.
Condessa de Ficalho – Berta! Não me diga que defende aquele crime...
Berta Maia – Não defendo esse, nem qualquer outro crime. (Pausa). Eu nunca quis ser feliz com a infelicidade dos outros. E o meu marido, no dia 5 de Outubro, disse à sua mãe que estava feliz por não ter matado ninguém. Na minha casa só se cultiva o bem.
Condessa de Tarouca - Julgam vocês que fazem o bem.
Condessa de Ficalho– A resposta não vai demorar muito. Deus já nos deu o sinal do milagre de Fátima em 1917.
Berta Maia – A República tem de ser para o bem de todos e acredito que Deus nos guiará no bom caminho.
Condessa de Ficalho– Eu também acredito em Deus, mas nós é que temos que fazer o nosso caminho. Sabe como é que eu tratei da fome na minha casa?
(Condessa de Ficalho em reunião com os criados)
Condessa de Ficalho - como sabem, a nossa casa está com dificuldades. Desde que esses traidores à Pátria nos roubaram terras, vinhas, lagares e cavalos, estamos a viver com muitas dificuldades.
Eles dizem que fizeram essa revolução para vos defender, às pessoas que trabalham e que são exploradas. Mas vocês sabem que o nosso palácio se esforçou sempre por tratar de vocês o melhor possível. Já tinha ajudado os vossos pais e avós e nunca faltou nada aos vossos filhos e netos.
Éramos uma família. Cada um no seu lugar, com respeito, mas éramos uma família.
Hoje, só se ouve falar em ódio e vingança. E isto nunca trouxe nada de bom a ninguém.
O que tenho para dizer, é muito triste.
A minha casa não pode continuar a alimentar tanta gente. Se eu fosse sozinha, mas há os filhos, genros, noras, sobrinhos, primos, como é que isto se pode aguentar?
( murmúrios)
Custa-me muito, esta noite fartei-me de chorar, mas as coisas são assim. E a culpa é desses republicanos que nos vieram tirar o sossego e a paz em que vivíamos.
(murmúrios)
Não querem ir? Mas o que é que eu posso fazer?
Bem, eu pensei numa solução.. Vocês, hoje, os trabalhadores é que mandam no país. Têm empregos bem pagos, as fábricas têm que vos aceitar, mesmo que depois fiquem na falência (ri).
Eu proponho que vocês vão trabalhar e que tragam cá para casa o ordenado que ganharam. Assim, pode ser que eu consiga aguentar as minhas duas famílias, a de sangue e a vossa, que é para mim de grande amizade e muito sacrifício.
(murmúrios)
Não querem, não me digam que já andam influenciados com as ideias desses malandros... Pensem bem. Olhem que a minha casa continua a ser visita de oficiais e de toda a gente que mandava neste país. E olhem que eles não estão parados; estão a organizar a guerra contra esses ladrões e toda a gente sabe que nós vamos ganhar outra vez.
Se vocês se portarem bem, eu protejo-vos nessa altura; mas se começarem com revoltas e recusas e ingratidões para comigo, que tenho sido uma mãe para todos, então ajustamos contas.
(silencio absoluto dos trabalhadores)
De acordo? Assim é que eu gosto de ouvir.
Vá, mexam-se, arranjem trabalho depressa que a casa já não é como era dantes, que aguentava tudo, os que trabalhavam e os que não faziam nada.
Encontramo-nos na missa, que o senhor padre há-de abençoar este acordo entre nós.
E agora, a minha benção...
(Grupo vai ao beija-mão)
Berta Maia – E se eles não quiserem?
Condessa de Ficalho - Berta, Berta, tenha juízo. Perceba que vocês ganharam contra a monarquia por um mero acaso, por um acidente da história...
Nós ganharemos sempre, porque temos a força da tradição, a Igreja apoia-nos, temos séculos de experiência a saber mandar, os criados respeitam-nos e temem-nos. E sabem muito bem que o patrão, o senhor, nunca pode estar na miséria. Até para poderem ter algumas migalhas. E também sabem que se isso acontecer, a nossa vingança será sem dó nem piedade.
Por isso, nos obedecem.
E é por essa razão que eles não ouvem as vossas belas palavras, vos denunciam e se põem ao nosso serviço.
(Continua)
quinta-feira, 23 de setembro de 2010
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