domingo, 12 de setembro de 2010

Prefácio a “Era uma vez, Future Kids”

Adão Cruz

Prefácio a “Era uma vez, Future Kids”, de Eva Cruz

Ei-la. A Serra. E o Vale, pregado à sua saia rodada. Lá estão para quem quiser ver. Mais difícil sentir. A Serra dourada de sóis, verde, negra de breu e prateada de luas altas, desdobrando-se sobre gerações em tapeçarias de cores e ramadas.

Paisagem da memória, memória de outras paisagens. Semeada de espaços que foram tempos, desde o Chão do Moinho às alturas da Senhora da Saúde. Vibrações de criança, gestos de sonho e de música que só o silêncio de hoje sabe escutar.

Fluindo como um rio, os olhos da Eva voltam a habitar os espaços e os tempos, em jeitos de vento e de chuva, de sol e luar, de crenças e fantasmas, de pássaros e flores e cheiros de terra molhada. A Eva cheira a terra molhada. A Eva é uma canção de inverno que só a lareira sabe cantar.

A verde Primavera casou com o amarelecido Outono e a Eva nasceu entre ninhos e rabusco.

A Eva tem uma alma de água onde se espraiam nenúfares, rentes aos pés das hidrângeas. Irmã de piscos e libelinhas, a Eva é uma tarde de Verão entrelaçada de amoras e gavinhas.

Há livros inesperadamente belos. Este é um deles, amadurecido de vida e sentimento, rendilhado de uma singular poesia, a mais bela de todas, a que nasce e cresce com a simplicidade de uma flor.

Romântica e sonhadora, a Eva soube trazer de novo aos caminhos a essência dos passos, decantando o amor e a paz na excelência estética duma autêntica pintura da rusticidade.

São de fábula os seus textos. Poemas que se dedilham por si sós em sons que se confundem com a água dos regatos. Sinais de um caminhar que foi sempre regresso. Como o sol. Cores e símbolos que não se esgotaram nos brinquedos da infância. Harmonia que a errância da vida não desfez e a festa da memória haveria de reinventar. Deliciosa cadência de amor e nostalgia, um tanto elegíaca, que tão bem nos dá o sentido dos longes. Melodia de uma respiração em comum numa vivência de lua cheia.

Pouca gente terá vivido e sentido como a Eva a força encantatória e mágica da aldeia onde nasceu. Por mais voltas que a vida tenha dado, por mais circunvoluções que o computador emocional tenha percorrido, a sua poderosa afeição à natureza e ao riquíssimo imaginário da infância prenderam-na à terra de pés e raízes.

Entender este livro no encontro com a idade da razão, não é fácil para quem não estreou a vida no abraço das árvores e no murmúrio dos rios, para quem não acordou com os melros e os rouxinóis, para quem não se vestiu de sol e se despiu de luar, para quem não colheu do chão a força do carácter e dele fez o seu fio de prumo. No entanto, a simplicidade quase comovedora desta narrativa, constitui um canal de emoções e sentimentos a que o leitor não pode furtar-se, e que lhe permitem descobrir e apoderar-se da magia que a percorre.

A cultura é o caminho da verdade e a verdade o cerne da existência.

A Eva é uma das raras pessoas que conheço que tocaram com os dedos a essência cultural da vida.

Quanto aos desenhos do Manel, apenas duas palavras. Se há pessoas capazes de sentir e entender a simplicidade destas cores e melodias do mundo, uma delas é o Manel, com a magnífica vantagem de as saber recriar à imagem e semelhança da beleza pura.






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17 comentários:

  1. Agora já começo a acreditar que é genético. Quando dois irmãos, e mais alguém da família, têm a mesma qualidade estética...que dizer?

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  2. Estava a ler este texto tão sentido e a remeter as minhas recordações para os campos sem horizontes da minha infância.Livre como a água que bebia dos pequenos riachos, que eu achava que desde que corresse era boa para beber, dos pomares que assaltava, com os cães às canelas, horas sem ver viva alma, as águias a cruzar os céus...fico inspirapo com os textos do Adão:

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  3. E não esqueças o Marcos Cruz, filho do Adão.É genetico, sem dúvida.

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  4. Que cante e espalhe a poesia a família que dialoga com tanto sentimento, porque entre a genética e a forma de estar existe a sensação e emoção. Entendem-se sem precisarem falar, porque o olhar cuidado adivinha o estar. Obrigasa A´dão por mais este momento em que fico feliz por saber ler.

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  5. Não sei que dizer. Para lá de tudo encanta-me a vossa sensibilidade. A poesia não está só em quem tenta agarrar-se às franjas da sua saia mas também, e às vezes mais,naqueles que a lêem e pedem que nos afastemos, para não estorvar.

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  6. Sorte a vossa que eu, citadina, tive que andar sempre aqui pelo meio dos amarelos da Carris que, no entanto, nos serviam muito bem para ir,à noite, ao cinema à Baixa e voltar. Agora,já nem de carro. E já não há cinemas na Baixa.
    É verdade, administração,quando é que podemos ouvir o Rui Veloso a cantar o "Porto Sentido"? Não só para os amigos do Porto. Para mim, também, que gosto muito dessa canção

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  7. E mais o Marcos Cruz? Ai, valha-me Deus! Mas não há formigas nessa família, só há cigarras? Eu acrescento já que sempre fui pró-cigarra, embora não tivesse tido outro remédio senão ter sido formiga toda a vida.

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  8. Que a divindade me mastigue se eu venho aqui meter-me noutra discussão sobre poesia. Venho só esclarecer a Augusta Clara que, numa próxima oportunidade, e a seu pedido, porei o Rui Veloso e o «Porto Sentido» que também considero uma das mais belas canções portuguesas das última décadas. E saio pela esquerda baixa.

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  9. Meus amigos, vocês são como os pirómanos - apaga-se um fogo num pinhal e vão a correr logo para outro fazer uma fogueirinha.

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  10. Ai, Carlos, o teu sentido de humor faz-me rir até às lágrimas.

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  11. Eu, de fogos, gosto daqueles gajos que assopram convencidos que com o sopro apagam o incêndio...

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  12. Agora temos esta escolha dos livros que é um bom bico de obra.

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  13. Eu já escolhi, corro o risco de deixar os "outros" de fora.

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  14. ... "a sua poderosa afeição à natureza e o riquíssimo imaginário da infância prenderam-na à terra de pés e raízes".

    Que belo texto, donde retemos estas palavras com as quais sorvemos avidamente um oxigénio mais fresco. Parabens

    Paxiano

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  15. Amigo Paxiano - quando é que nos envia um texto escrito por si?

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