sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Religiões e Liberdades

Fernando Pereira Marques

Na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de Agostode 1789, a questão da liberdade religiosa surge imediatamenteseguida pela da liberdade de expressão e de opinião. Com efeito, lê--se no Art.º 10.º: “Ninguém deve ser inquietado pelas suas opiniões,mesmo religiosas, desde que a manifestação delas não perturbe aordem pública estabelecida pela lei.”; e no 11.º :”A livre comunicação do pensamento e das opiniões é um dos direitos mais preciosos do homem; todo o cidadão pode portanto falar, escrever, imprimir livremente, respondendo pelos abusos desta liberdade nos casos determinados pela lei.”Na Declaração posterior de 1793, na fase seguinte da Revolução, essas mesmas matérias surgem, significativamente, entradas num único artigo, o 7.º, que diz: “ O direito de manifestar o seu pensamento e as suas opiniões, seja pela via da imprensa, seja de outra maneira, o direito de se reunir pacificamente [paisiblement], o livre exercício dos cultos não podem ser proibidos. Anecessidade de enunciar estes direitos deve-se à presença ou à memória recente do despotismo.”

Entre nós, na sequência da revolução liberal de 1820, o projecto de Bases da Constituição posto à discussão dos deputados constituintes, dedicava três artigos à liberdade de pensamento e de expressão
(o 8.º, o 9.º e o 10.º). No 8.º transcrevia-se, praticamente, o artigo análogo da Declaração de 1789; no 9.º estabelecia-se a liberdade de imprensa e o fim da censura prévia, reenviando-se para as leis ordinárias
e um tribunal a criar os abusos que viessem a surgir; no 10.º, numa redacção bastante confusa, especifica-se o eventual “abuso” a essa liberdade em “matérias religiosas”, atribuindo--se aos bispos a censura (prévia?) dos “escritos publicados sobre dogma e moral”, o Governo comprometendo-se a auxiliá-los “para serem castigados os culpados”.

A discussão destes artigos iniciou-se em 13 de Fevereiro de 1821 e, para o que aqui nos interessa, é despiciendo saber qual veio a ser a versão final dessas Bases que D. João VI logo foi convidado a jurar, mal chegou do Brasil. Relevante é que a partir do dia 3 do mês seguinte principiou o debate – que só terminaria em 2 de Julho – sobre a proposta de lei de liberdade de imprensa, promulgada em 14 desse último mês.

Ao ler-se o diário das sessões parlamentares apercebemo-nos de que, no centro das preocupações e da controvérsia, está a relação da liberdade de imprensa com a religião, na altura já estando decidido que o catolicismo seria expressamente referido como religião do Estado. Em síntese, duas posições principais se demarcaram: a dos que consideravam não dever a liberdade de imprensa ser extensível às matérias religiosas, para estas tornando-se necessária a censura prévia; e a dos que recusavam qualquer forma de censura.

Defendiam a primeira posição naturalmente os homens da Igreja – entre os quais o futuro cardeal Ribeiro Saraiva –, mas também muitos outros deputados. Alguns utilizando argumentos os mais imaginosos, no sentido de demonstrarem que essa liberdade era incompatível com a salvaguarda da religião. Um deles, Anes de Carvalho, na sessão de 14 de Fevereiro, afirmava que devido aos quase trezentos anos de Inquisição e ao longo período de “triplicada censura” (a real, a inquisitorial e a da Igreja), a “nação não está preparada nem pela opinião nem pela instrução, para tamanha largueza de liberdade.” Entre os opositores à censura estavam os liberais mais consistentes e coerentes, como Borges Carneiro e, sobretudo, a grande figura do Vintismo, Manuel Fernandes Tomás.

Acabariam por prevalecer estes últimos. No Título II dessa lei – notável para a época –, os possíveis abusos “contra a Religião Católica Romana” foram colocados ao nível dos abusos “contra o Estado”, “contra os bons costumes” (que também compreendiam os “ataques directos à moral Cristã recebida pela Igreja Universal”) e “contra os Particulares”. Previam-se penas de prisão e pecuniárias para os dois primeiros tipos de abusos e só pecuniárias para os dois últimos. Haveria um tribunal especial e as infracções seriam julgadas
por jurados (juízes de facto) e um juiz de direito.  Esta primeira experiência liberal duraria menos de dois anos. Não obstante, tinham-se dado passos que começavam a deixar marcas irreversíveis no que se refere às liberdades em consideração, como o prova a Carta Constitucional de 1826 onde, no essencial, as mesmas teriam acolhimento. Seguir-se-ia o período de seis anos de regressão miguelista que terminaria com a vitória liberal em 1834. E mal fora assinada a Convenção de Évora-Monte, a cumplicidade que tivera a Igreja com o absolutismo derrotado, originaria a ruptura entre os liberais e a Santa Sé – um verdadeiro cisma que durou vários anos – e ajudaria a criar as condições para serem levadas à prática as primeiras medidas claramente laicizantes, como foram a extinção das ordens religiosas e a desamortização dos seus bens. Ou seja, prosseguir-se-ia na via iniciada pelo Vintismo, e após muitos avanços e recuos, chegar-se-ia à lei republicana de Abril de 1911 de separação das igrejas do Estado.

Recorde-se, a talhe de foice, que mesmo o regime surgido do golpe do 28 de Maio de 1926 não poria em causa esta desconfessionalização formal do Estado. Salazar era demasiado cioso do seu poder para aceitar partilhá-lo sem negociação, estabelecendo por isso com a Igreja católica uma base de entendimento  expressa na Concordata de 1940. Verifica-se, portanto, com esta breve incursão histórica, e se dúvidas houvesse, que como John Locke, Pierre Bayle, Voltaire ou Condorcet tinham ajudado a perceber, liberdades ínsitas ao paradigma liberal e democrático que emergiu com a modernidade, como são a liberdade de informação, a liberdade de pensamento, a liberdade de expressão, são incompatíveis com um Estado teocrático ou teocratizado. Ora, tais liberdades afirmaram-se e instituíram-se após processos complexos e demorados, lutas corajosas contra as resistências dos sistemas de dominação legitimados pelas religiões, havendo sociedades e sistemas políticos onde mesmo nos dias de hoje isso ainda não aconteceu.

Na verdade, as religiões, muito particularmente as do Livro, são intrínseca e tendencialmente liberticidas e totalitárias, se não forem disciplinadas e confinadas à esfera do privado, pela sociedade organizada em opinião pública e pela vontade plural e política transcrita na lei. O Levítico ( XXIV, 16, 3.ª parte da Torah) contem uma passagem eloquente que nos ajuda a ilustrar as asserções anteriores:

“Aquele que blasfema evocando o nome do Senhor deve ser morto, toda a comunidade o deve lapidar.” Quanto ao cristianismo, a partir do Concílio de Latrão de 1179 iniciou-se a institucionalização do delito de opinião, do qual se encarregaria a Inquisição, desde a sua primeira fase no século XIII até à segunda a partir do século XV. Em particular na Península Ibérica, onde demonstrou a eficácia, a pertinácia e a istematicidade repressivas que são conhecidas. Mas nem as igrejas reformadas escapariam às pulsões teocráticas, não obstante nunca terem atingido a dimensão obscurantista e os excessos do catolicismo tridentino.

Por seu lado, as sociedades influenciadas pelo islamismo não sofreram processos de secularização e de laicização semelhantes às do mundo ocidental influenciadas pelo Iluminismo, salvo na Turquia, já no século XX, com Kemal Ataturk, e noutros casos de revoluções nacionalistas, como no Egipto de Nasser. Pelo contrário, assiste-se, actualmente, a recuos manifestos na modernização dessas sociedades, à emergência de novas teocracias, como no Irão, e a um desenvolvimento exponencial de movimentos fundamentalistas,
inclusive no seio das comunidades muçulmanas existentes em democracias ocidentais.

O que se passa com o Islão é demasiado complexo para aqui se aprofundar, interessa, porém, na economia deste texto, sublinhar que o crescimento desta corrente de neo-teologização do Estado e da sociedade, estende-se igualmente a outras religiões, como a judaica, em Israel, ou a cristã em diversos países, como nos EUA. Trata-se, digamos, de um ressurgir de novos clericalismos que se manifestam e incidem em diversos domínios, no científico (recordem-se as cíclicas campanhas anti-evolucionistas), no da investigação (vejam-se, por exemplo, as resistências relativas às experiências com células estaminais), no do ensino, no cultural, no da saúde pública (recorde--se a questão da interrupção voluntária da gravidez), procurando impor no direito público e na acção política, as suas concepções de sagrado, os seus valores, a sua visão do mundo.

Deste modo, as tensões geradas pelas tendências teocratizantes das igrejas e das religiões, sobretudo no que concerne às liberdades de expressão e de criação, têm-se vindo a agravar nos últimos tempos. Recordem-se, já nos anos 80, as campanhas contra os filmes Je vous salue Marie de Jean-Luc Godard e A Última Tentação de Cristo de Scorsese, ou, na década seguinte, contra a peça de teatro Chorpus Christi, de Terence McNally. Mas, mais recentemente, é o islamismo que tem originado actos e movimentos violentos visando condicionar essas liberdades nas democracias ocidentais: recordemos o caso das caricaturas de Maomé publicadas num jornal satírico dinamarquês e das ondas de choque por isso provocadas, o asassinato de Theo van Gogh, na Holanda, por causa de um documentário por ele realizado, ou ainda, como exemplo da auto-censura que começa a condicionar os media, os agentes culturais e os decisores políticos, o episódio da ópera Idomeneu, de Mozart, cuja estreia chegou a ser adiada em Berlim.

Recordámos aqui que, entre os fundamentos da modernidade, consequentemente dos direitos, liberdades e garantias democráticas, encontram-se aspectos elementares da laicidade, como o de que o respeito pelos crentes não é a mesma coisa do respeito pelas crenças. Ou seja, as convicções particulares, mesmo de muitos, não podem nem devem ser impostas a todos, nem pelo poder político nem pelo poder clerical. Donde ainda se conclui que nenhum princípio de autoridade pode excluir do juízo crítico, até da sátira ou da ironia, qualquer religião ou ideologia. Inclusive a blasfémia é um direito indissociável das liberdades de consciência e de expressão, pois só é blasfemo quem não crê aos olhos de quem é crente, e se o primeiro
não deve impor a sua descrença, o mesmo se passa com o segundo quanto à sua crença. Ceder quanto a estes valores e a estes princípios significa abrir o caminho a um grave retrocesso civilizacional que nenhum laxismo relativista ou nenhum irrealista multiculturalismo podem justificar. O respeito e a tolerância face à diferença terminam onde começa a dignidade e os direitos das pessoas de ambos os géneros.



(Transcrito da Revista Lusófona de Ciência das Religiões, Séria Monográfica, Vol.V.,ULHT,2009.)

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