sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Ainda a poesia ! ! !

Adão Cruz


Como a nossa conversa foi cortada pela passagem da grandiosa maratona, eu volto a ela, mesmo correndo o risco de um puxão de orelhas do Carlos, o qual, coitado, já deve deitar poesia pelos olhos. Mas se eu o não fizer, a secção feminina do estrolabio vai ralhar-me.

Quem me vê aqui a escrever sobre poesia e outros temas com esta delicadeza, pode pensar que eu sou algum perito ou algum especialista nestas matérias, e eu não sou nada disso, nem pretendo armar em tal. Nem mesmo na nossa profissão, em que abordamos os assuntos com muito mais conhecimento, nos podemos considerar sábios! O que sou é um curioso, como tanta gente, e um tanto entusiasta na discussão de assuntos que há muito me interessam e sobre os quais me dá um grande prazer conversar. Longe de mim, contudo, considerar-me senhor da verdade.

Neste assunto da poesia, sobre o qual temos vindo a conversar, sobretudo com o grande amigo e experiente interlocutor Carlos Loures, e depois desta magnífica maratona que ele levou a cabo com ciclópico trabalho, claro que eu não posso deixar de lhe dar razão em muita coisa, mas também julgo ter alguma razão noutras coisas. O Carlos diz que falamos de coisas distintas. Ele fala de técnica e eu falo de sentimento. Mas as duas realidades não podem ser separadas de forma tão simplista.

Podemos dizer que o academismo é indispensável na área das ciências. Na engenharia, na arquitectura, na medicina, na matemática, na física. Na esfera das artes, sobretudo nas artes plásticas e na literatura, podemos aceitar que não seja indispensável, o mesmo já não se podendo dizer, tão atrevidamente, na música. Claro que o academismo, bem orientado, bem ministrado, altamente responsável, (o que dificilmente acontece) pode ser importante e muito útil, mas, mesmo assim, também pode ser negativo, castrador e redutor das potencialidades artísticas e intrínsecas do indivíduo. E não sou eu que o digo. Já o tenho visto escrito em muitos lados, e, se não estou em erro, foi o próprio Tàpies que disse que o academismo era a doença congénita da arte. Expressão idêntica julgo ter ouvido de Júlio Pomar numa entrevista aqui há uns anos atrás. E há casos em que o academismo pode destruir grande parte do interesse, do entusiasmo e até do valor de um artista. Conheço alguns e tenho um caso desses na família. No meu caso pessoal, por exemplo, eu escrevo, bem ou mal, da forma que escrevo, e pinto, bem ou mal, da forma que pinto. Nem num caso nem noutro tive estudos específicos, sendo a minha formação puramente amadora e fruto de bastantes leituras (não técnicas) através da vida. Dei sempre muito mais valor à minha formação interpretativa do valor das coisas e do mundo. Se tivesse grande formação académica, linguística, literária e poética, ou uma boa escolaridade em pintura, poderia escrever ou pintar muito melhor (ou não!), mas, provavelmente, mal ou bem, nunca escreveria ou pintaria como o faço hoje, isto é, dificilmente me sentiria o “eu” que hoje escreve e pinta como sabe e sente.

Por isso a minha insistência em considerar que no meio de milhares de definições da poesia, não há definição para a poesia, como não há definição para o amor, dado que, em minha opinião, a poesia é um sentimento, traduzível de imensas formas em muitos actos da nossa vida e também através de poemas, a sua matriz “natural”, ou melhor, habitual. Ao colocar a palavra natural entre aspas, isso significa que a poesia existe em muitas outras expressões, expressões na vida do dia a dia, na música, na dança, no teatro, na pintura. Um quadro pode valer muito mais pela poesia que nele transparece (não estou a falar de sentimentalismo) do que pelas cores e pela figuração. A definição de poesia, como tenho dito, poderá vir a ser dada, penso eu, um dia, pela neurobiologia. Mas a poesia não é o poema, nem o poema é a poesia, embora os dois estejam tão unidos como o cérebro e o pensamento. A poesia existe antes das palavras e da construção do poema, podendo ser atraída pelas palavras se elas forem suficientemente magnetizantes. A poesia transita por quem faz o poema e por quem o lê, mas o poema pode não passar duma execução sumária da poesia, apesar de ter sido estruturado com todas as regras e conhecimentos. Por outro lado, dois simples versos sem preocupações técnicas linguísticas podem estar prenhes de poesia. Se pelas palavras não passar o sentimento poético como sangue nas veias, não existe, a meu ver, esse inebriamento mágico que é a poesia.

29 comentários:

  1. O Estrolabio já me engoliu um comentário.Tenho que voltar a escrever tudo. Dizia eu que temos que deixar passar o 11 de Setembro porque o Carlos está pelos cabelos com a organização dessa triste efeméride.
    Mas esta ínfima percentagem da população feminina cá do burgo,que sou eu ,vai-se zangar muito se esta discussão não for retomada. V. Exas. é que são os poetas mas eu estive com muita atenção a alguns textos da maratona que referiam o tema em causa - técnica ou sentimento - e, agora, quero ver como se vão saír desta. Boa noite :)

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  2. A poesia é a forma extraordinariamente bela de comunicar, dizia o meu professor de Português Alberto Fialho Junior. E comunicar pode ser pela pintura, pela prosa, pela música pela arquitectura. A poesia no nascimento de uma criança na beleza de uma mulher, num momento único que não chegamos a perceber porquê.Este conceito que o Adão aqui trás percebe-o muito bem!

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  3. Hoje dei com este texto por mero acaso na net:
    Não se pode matar o amor
    Por Fundação José Saramago
    Eu acredito que o sentimento é como a Natureza. Não podemos, em nome da experimentação, da frieza científica, da objectividade e de todas essas coisas, expulsar o sentimento das nossas preocupações e das obras que vamos escrevendo. O sentimento estará sempre na moda, porque homem e mulher sempre sentirão amor. Não se pode matar o amor. Por isso tem uma presença tão importante nos meus romances.

    “La isla ibérica. Entrevista con José Saramago”, Quimera, Barcelona, nº 59, 1986

    De alguma forma responde-se à questão colocada pelo Carlos e o Adão. A técnica, se existe, é tão pouco importante! O sentimento, ah sem ele não haverá poesia nunca! Uma coisa é trabalho, outra técnica. O trabalho é necessário, a leitura idem, mas sempre acompanhado so SENTIMENTO.
    beijo todos osque leêm poesia, enquanto leitores reescrevem o poema.

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  4. Sinto-me enternecido, porque penso que fui compreendido

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  5. Não me vou baldar à discussão. Mas hoje vou sair e só volto tarde. Digo só uma coisa - esta discussão é complicada e dificilmente permitirá chegar a conclusões. A intervenção da Ethel vem complicar, na minha perspectiva, porque quando diz que a ténica se existe é pouco importante. Então o que tem importãncia? O sentimento? Sentimento, toda a gente o tem - o problema é saber transmiti-lo - a isso chamo técnica, à capacidade de passar aos outros as emoções que temos, ou que fingimos ter, de forma a que eles as experimentem. Arte poética não é uma expressão vazia - significa o saber que permite traduzir em palavras os tais sentimentos e emoções. Não aceito o cliché de que se «nasce poeta», que me parece estar debaixo das vossas línguas. Essas concepções desvalorizam a grande poesia que, tal como a grande música ou o grande romance, é fruto de muito talento e de muito trabalho. Para se ser um grande músico, passas-se por muitos anos de aprendizagem. Na vossa concepção de poesia, o poeta nasceria por um qualquer milagre.

    Se calhar, se conseguíssemos acertar a terminologia que usamos, nem estaríamos tanto em desacordo. O Saramago (que não era um grande poeta) não diz, em todo o caso, nada com que eu não concordo e nem percebo por que é que é chamado a esta controvérsia. Não falei de frieza científica. O que tenho defendido é que a poesia é, numa definição empobrecedora, como o são quase todas as definições, a capacidade de, num verso, dizer aquilo que a um romancista leva uma ou mais páginas a dizer. Essa capacidade de síntese aprende-se, treina-se, estuda-se. É a esse esforço de aprendizagem, que nada tem a ver com frieza científica, que chamo técnica ou arte poética.
    Chama-se poesia a muita coisa que o não é, na minha opinião.

    Bem, até logo. hoje não vou para dentro, vou para fora,

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  6. Só dois comentários feitos superficialmente porque não tinha visto ainda o comentário do Carlos:
    1 - Francamente, também, não percebo o que é que veio para aqui fazer o Saramago com o "não se pode matar o amor". Que grande novidade!
    2 - Não acho que se nasce poeta. Nem tanto ao mar nem tanto à terra. Por isso é que gostava de ouvir a continuação dessa discussão.
    Imagino que deves estar mais do que farto de poesia. Tira férias, que tens direito a elas. Esta conversa pode bem ficar para mais tarde.

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  7. Obrigado Augusta Clara pelas férias que me concedeste. Fui roer uma laranja na falésia a Porto Covo - está uma vila linda! Nunca me farto de poesia, embora tenha havido momentos na preparação da maratona em que achei que me tinha metido num grande sarilho. Por mim, estou disposto a ir conversando sobre o tema. Em todo o caso, acho que era muito útil acertarmos agulhas quanto ao que cada coisa quer dizer. Não podemos estar tanto em desacordo como parece.
    Na discussão sobre cultura, passou-se o mesmo -falando-se de pessoas analfabetas que eram, apesar disso, muito cultas. Não pode ser. Uma pessoa analfabeta pode ser sábia. Um poeta popular pode (e aconteceu com o Aleixo) fazer verdadeira poesia. Mas o Aleixo é a excepção que confirma a regra - a "poesia popular" muito raramente é poesia; apenas banalidades ditas em verso e rimando. E como diz o O'Neill, salvo erro, as rimas são o pão de ló dos tolos.
    Na minha fase surralista, alinhei nessa tese de que o poeta é um demiurgo; hoje, sei que é quando é. E que a poesia é um trabalho sério, um esforço de comunicar coisas importantes, emoções, sentimentos, ideias. Esse poder de comunicação, aprende-se, treina-se, exercita-se. Claro que há quem detenha essa técnica e seja mau poeta. Queria, com a minha intervenção nesta amigável discussão, combater a ideia de que a poesia é uma coisa fácil. Só o é quando não presta. Na maratona publicámos grandes poemas de grandes poetas - acham que é fácil escrever como Pessoa, Celaya, Verlaine ou Baudelaire?

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  8. E encontraste lá o vizir de Odemira? Ah, é verdade, esse foi o que "por amor se matou novo" :))
    Por favor, não comeces a discussão hoje porque eu, ainda, tenho que arrumar as notas para uma ou duas perguntas que quero fazer,e mais nada! Essa polémica é entre ti e o Adão, a quem Deus deu o privilégio de serem poetas. A mim não me foi concedido o dom. Por isso, só tenho dúvidas. Além disso, estive toda a tarde de serviço, como já reparaste.

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  9. Pois aí é que reside o nó górdio - a ideia de que um deus qualquer concede o dom da poesia seja a quem for, não cabe na minha cabeça. Não creio que o Adão acredite nessa, embora o conceito que defende, na prática, se aproxime dessa "explicação". Não vi o vizir de Odemira, o tal que por amores se matou novo; mas estive a rever a ilha do Pessegueiro.

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  10. Carlos, penso que não vale a pena prolongar esta conversa porque é um assunto muito difícil. Queria, no entanto dizer-te que discordo de meia dáuzia de coisas que dizes e concordo com outra meia dúzia:
    1 - Quando dizes que sentimento toda a gente o tem, eu digo que sentimento poético muito pouca gente o tem.
    2 - Não se nasce poeta, dizes tu. Pois eu digo-te que quase se nasce, e quem não nasce poeta, dificilmente o será.
    3 - Fazer poesia não é fazer música. Não compares. Sou dos que acreditam na capacidade de fazer poesia por parte de muitos que investiram não em técnica, mas numa formação interpretativa do valor das coisas e do mundo.
    4 - o poeta não nasce por milagre,ironizas tu, mas não há nenhum milagre que faça um poeta se ele o não for, por essência e não por técnica.
    5 - Dizes que se chama poesia a muita coisa que não o é. Concordo. Mas há muita coisa que é verdadeiramente poesia e passa por não ser.
    6 - Concordo contigo quando dizes que a poesia não é uma coisa fácil. Eu diria que é muito dificil. Creio que aqui falha o nosso acertar de agulhas. Em tudo o que escrevi, nunca deixei a noção de que a poesia é fácil e nunca mostrei aceitar a poesia inculta popular como poesia.
    7 - Nunca te desmentiria quando dizes que a comunicação poética se aprende, se treina e se exercita.
    8 - O que eu sempre disse e continuo a dizer é que há um sentimento poético, relativamente raro, que não se pode confundir com sentimentalismo nem mesmo com outros tipo de sentimento, sentimento poético esse que nem toda a poesia, mesmo de alguns desses a que chamas grandes poetas, contém. Não refiro nomes para não escandalizar.

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  11. O dom era a brincar, como é evidente. Esta discussão, por escrito é complicada. Seria mais para uma conversa. Mas, sinceramente, acho que as vossas posições já estão bem esclarecidas. Se calhar,não vale mesmo a pena continuarem.

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  12. Eu digo quase se nasce poeta ou quase se pode nascer poeta, porque o SENTIMENTO POÉTICO, ESSÊNCIA da poesia, volto a dizer, tem, muito provavelmente, uma base genética indiscutível.

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  13. Adão, a base genética indiscutível é que eu não sei, não. Agora usa-se e abusa-se da genética. Há ADN por todos os lados...

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  14. Se houvesse um 'sentimento poético' de base genética o problema seria que não valeria a pena que quem não ele nascesse escrevesse poesia, que ficaria para os pré-destinados.
    Triste perspectiva.

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  15. Eu não quero voltar a esta discussão. Já disse que me identifico, no geral, muito com a tua maneira de te exprimires poeticamente. Também percebo, de certo modo, o que o Carlos quer dizer. Mas, quanto a isso, às regras, sou ignorante e, era por isso, que faria algumas perguntas. Mas acho que, também, já estou a ficar cansada desta discussão.
    É um pouco como discutir a inteligência: a inteligência "educa-se" ou não?
    Bem, mas não é para caírmos noutra :))

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  16. É verdade, Pedro. Até porque, a nível genético, as interacções são muito complexas e as manifestações fenotípicas também variam muito com as condições ambientais que podem ser sociais, culturais, etc.

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  17. O primeiro verso (ideia) é dado o resto dá muito trabalho. Há uma centelha e depois é preciso ter técnica e capacidade para a desenvolver.

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  18. Já foram todos dormir? Agora que a conversa estava animada...Hoje é sábado, caramba!

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  19. e eu nem tinha percebido que a discussão continuava vejo que o Saramago foi mal recebido! nem seuqer posso aceitar que esta conversa seja somente entre o Carlos e o Adão, apesar de me achar mais que bem representada pelos dois, acho que podemos sempre trazer outros convidados à discussão. Parece-me que quando nos cansamos de defender os nossos pontos de vista estamos próximos de ouvir o outro e descontruir o que somos ou julgamos ser. assim quando o assunto parece esgotado encontra-se o passo e acerta-se o compasso. De sentimento todos estamos de acordo, sobre o talento também, depois a técnica e o trabalho fazem juz ao consenso. O que tenho a certeza é que sem trabalho não chegamos lá. Fica dificil eleger uma coisa excluindo outra. O mais acertado é juntarmos todos os predicados. E ainda assim fico feliz, querida Augusta, por termos todos falado. beijinho :)

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  20. Luís, eu acho que já só sei que nada sei. Fico mais satisfeita de pensar como o Sócrates.

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  21. Dormir? Eu? Os administradores não dormem!

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  22. Só para terminar:
    A hipertensão, chamada essencial ou idiopática, isto é, sem causa definida, tem como causa um largo espectro de causas no qual entra um componente genético indiscutível. Se a pessoa que nasce com propensão para hipertensa (admitam-me aqui esta pouco elegante metáfora do tal sentimento poético),tudo fizer na vida para eliminar essa tendência, até pode nunca chegar a ser hipertensa. Se a pessoa tudo fizer na vida para acentuar essa tendência, pode vir a ser uma pessoa com marcada hipertensão.
    Como diz a Augusta Clara, este assunto já é capaz de chatear e uma das coisas que mais me horrorizam é ser chato.

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  23. nem por sombras, meu caro Adão.A verdade é que há um momento em que alguem recebe um sinal e a partir daí desenvolve uma ideia de uma forma muito bela.Para a desenvolver precisa de técnica, de domínio da língua...mas nem todos recebem a tal centelha, ignição ...

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  24. Faço questão de que seja o Adão a pôr termo à discussão e a fazer um pequeno balanço das diferentes posições (sem o que se perde a vantagem de debater). Luís e Cª, deixem o Adão falar.

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  25. Se me dão a honra de põr termo à discussão eu ainda começo outra vez a desbobinar e não é coisa que me agrade. Tudo tem os seus limites. Se não se importam deixo o encerramento para a minha irmã Eva Cruz, e ficamos todos no paraíso.

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  26. Já que o meu irmão me passou a batata quente...só me apetece dizer: " A thing of beauty is a joy for ever." O resto é dialética.

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  27. Lindo o que disse a Eva Cruz.
    Adão, eu só disse cansada,não disse chateada. Não só não estava como não seria indelicada a esse ponto. Um abraço.

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  28. Ora, aí está a poesia. (esta é expontânea, não conta...)

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