segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Arte poética; António Osório, João Machado, Vasco Graça Moura.


António Osório
(Setúbal, 1933)

PESO DO MUNDO


A poesia não é, nunca foi
uma enumeração ou composto
de exuberância, bondade,
altitude, nem arado
ou dádiva sobre chão
prenhe de mortos.

Nem o arrependimento
de Deus por ter criado o homem
com o rosto da sua memória,
ao lado dos seus vermes.

Tão-pouco fôlego dos que amam
abrindo a porta límpida
do corpo e chovendo sobre a terra,
ou carregam como tartarugas
o peso do mundo.

Nem reverência por um tigre,
pela leveza maligna de todas as patas,
pela sonolência junto à estirpe
aprisionada também
na dureza de ser tigre.

É o milagre de uma arma
total, de uma só palavra
reduzindo o átomo à completa inocência.

(A Ignorância da Morte)






João Machado
(Lisboa, 1943)

SOBRE UM MAU POETA

Vou contar-vos uma tragédia
De um senhor que queria ser poeta
Fazer lindos versos tinha por meta
Resultava sempre uma fraca comédia

Rimas pobres era uma praga
Pontapés na gramática em cada linha
Pois a falta de talento esmaga
Quem tem pouco juízo na pinha

A poesia é a arte de comunicar
De quem tem o sentimento, a excepção
Com quem vive o dia banal, o vulgar

Transmitir o fogo, a modulação
De querer, sofrer, lutar, amar
Sem dos medíocres vir atrapalhação

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Vasco Graça Moura
(Porto, 1942)

As palavras estão presas ao real. Não há praticamente nenhuma poesia, nenhuma literatura, que sobreviva se não houver uma especial coerência entre elas e a realidade. Talvez o mesmo se possa dizer em relação a todas as outras artes, sendo certo que, na música, estas coisas se põem em termos qualitativamente diferentes (provavelmente na música, e no Ocidente, o sistema tonal tende a exercer a mesma força de atracção que o real). Estas coisas para mim põem-se em termos de uma extrema simplicidade, sem altos voos filosóficos, num plano prático e corrente dos significados. É claro que a espessura do real é múltipla: tanto inclui o onírico como o pensamento abstracto. Eppure... é sempre o real. Hoje, assim como nas artes o fim do século XX parece ter ficado assinalado por um "neo-figurativismo" (outra vez o real...), também na poesia se regressa ao real (subjectivo e objectivo) em muitas modalidades. O escritor é um ser humano que utiliza as palavras com um certo nível de exigência qualitativa. Capturar o real, mesmo que seja para fazê-lo "inflectir", é um dos seus objectivos. É provável que o cinema e a fotografia tenham contribuído para acentuar essa necessidade. Não penso que se trate de um vício, mas de uma condição inelutável. A literatura é uma forma de criação artística pela palavra, mesmo quando tenta convocar outras áreas (veja-se, por exemplo, a ekphrasis). A sua relação com o real decorre naturalmente desta condição verbal.

(em entrevista a João Luís Barreto Guimarães)

E já agora, um poema de Vasco da Graça Moura sobre os "Poetas de Lisboa", letra de um fado cantado por Carlos do Carmo:

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