quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Arte poética: Jean-Paul Sartre, António Sales, Miguel Torga e Natália Correia


Jean-Paul Sartre

(Paris,1905 -1980)


OS POETAS

Os poetas são homens que se recusam a utilizar a linguagem. Dado que é com e pela linguagem, concebida como uma espéie de instrumento que se pratica a busca da verdade, não é preciso imaginar que eles procurem descobrir o que é verdadeiro ou expô-lo. (...) Se o poeta conta, explica ou demonstra, a poesia torna-se prosaica; o poeta perdeu a partida.

(O que é a Literatura)

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António Sales
(Torres Vedras, 1936)



LETRAS



De letras compõem-se as palavras,
letras de muitas línguas
muitos mundos.
Sementes rituais
de cores inebriantes,
também ervas daninhas,
amargas, soluçantes.

De letras grandes e pequenas
fabricam-se as palavras,
com pernas e sem pernas,
gordas, magras,
altas, baixas,
todas elas, porém,
prontas a marchar.


Umas redondas, meigas,
esculpidas de beleza
perdidas de paixão, arrebatadas.
Letras obesas
sebosas e servis,
castradas de carácter
pobres e imbecis.

Há letras de chorar
e letras de sonhar,
luminosas
alegres de encantar,
brilhantes como estrelas
de mãos dadas a bailar.

Ai letras
minhas queridas letras!
Semeiam palavras
orvalhadas de sol.





Miguel Torga


(São Martinho de Anta, Sabrosa, 1907 — Coimbra, 1995)


ARTE POÉTICA



Fecho os olhos e avanço.
E começa o poema.
Rodeiam-me os fantasmas
Fugidios
Dos versos que persigo.
A regra é caminhar
E chegar sem saber.
De tal modo é cruzada
A encruzilhada
Onde o milagre pode acontecer.

Mas sendo, como é, de cabra-cega
O jogo,
E é um destino jogá-lo,
É sempre incerto que o principio.
Tacteio no vazio
Da expressão,
Vou seguindo
Seguindo,
E ganho quando sinto a salvação
No próprio gosto de me ir iludindo.

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Natália Correia
(Fajã de Baixo, São Miguel, 1923 — Lisboa, 1993)

A DEFESA DO POETA


Senhores jurados sou um poeta
um multipétalo uivo um defeito
e ando com uma camisa de vento
ao contrário do esqueleto


Sou um vestíbulo do impossível um lápis
de armazenado espanto e por fim
com a paciência dos versos
espero viver dentro de mim


Sou em código o azul de todos
(curtido couro de cicatrizes)
uma avaria cantante
na maquineta dos felizes


Senhores banqueiros sois a cidade
o vosso enfarte serei
não há cidade sem o parque
do sono que vos roubei


Senhores professores que pusestes
a prémio minha rara edição
de raptar-me em crianças que salvo
do incêndio da vossa lição


Senhores tiranos que do baralho
de em pó volverdes sois os reis
sou um poeta jogo-me aos dados
ganho as paisagens que não vereis


Senhores heróis até aos dentes
puro exercício de ninguém
minha cobardia é esperar-vos
umas estrofes mais além


Senhores três quatro cinco e sete
que medo vos pôs na ordem ?
que pavor fechou o leque
da vossa diferença enquanto homem ?


Senhores juízes que não molhais
a pena na tinta da natureza
não apedrejeis meu pássaro
sem que ele cante minha defesa


Sou uma impudência a mesa posta
de um verso onde o possa escrever
ó subalimentados do sonho !
a poesia é para comer.

Num serão em casa de Amália Rodrigues, com a presença da anfitriã e de Vinicius de Moraes, David Mourão-Ferreira; José Carlos Ary dos Santos, Natália Correia decalmou "A defesa do poeta". Eis a gravação:


4 comentários:

  1. Este quadro que coube ao poema do António Sales e que para mim se chama "A Menina do Mar" é uma delícia.

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  2. Suponho que nunca me pronunciei sobre a pintura de Adão Cruz aqui publicada e de que gosto imenso. A sua pintura (pª. mim) começa por ser comunicativa pelas cores fortes num jogo de combinação de tons ou, muitas vezes contrastantes. Quanto mais abstractos mais me identifico. Não sei explicar, mas talvez seja pela liberdade de mão que a pintura ganha. Acredito que seja ignorante em o não conhecer antes, mas agora tornei-me admirador da sua pintura.

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  3. Cheguei a casa com tarefas agendadas, preparando uma Jornada sobre Direitos da Criança -e logo a sua violação - para amanhã.
    Cairam-me no colo estes quadros maravilhosos e estas palavras cheias de significado. E apetece-me mergulhar neste mundo e esquecer o que amanhã de mim esperam. Como encontrar o equilíbrio? Se falho, sinto-me mal, mas para cumprir também tenho que me sentir bem... E acho que isto me ajudou, para me voltar a lembrar que a vida também pode ser bonita e que talvez eu consiga transmitir às pessoas isso mesmo, a procurar da esperança, a procura do futuro, a procura do passado que vale a pena reviver, a procura de formas belas de o demonstrar.

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  4. A pintura do Adão é linda. Há alguns quadros, poucos, de que gosto menos mas são muito poucos e, se calhar mais pela côr do que pelo desenho. As côres que ele mais utiliza são uma maravilha: fortes, sobretudo os azuis. E os desenhos têm muito a ver com a poesia dele, na minha opinião.

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