terça-feira, 19 de outubro de 2010

Carta aberta aos líderes parlamentares do nosso país, a propósito de um menino pobre que eu fui(I)

Júlio Marques Mota*





Coimbra, Outubro de 2010

Ex.mo Senhor Deputado

O menino pobre que eu fui nasceu algures numa aldeia do interior beirão, no início dos anos quarenta, num país rural fechado sobre si mesmo e sob um regime de ditadura. Com pais pobres, deles histórias lidas não ouvia e contadas também não. As que ouvia, eram ouvidas e sentidas nas homilias, ao domingo. Mais tarde, aprendeu a ler, e depois a ler histórias, graças a uma senhora desde há muito desaparecida, que mão amiga, que lhe emprestava em formato de quase livro folhetins do jornal O Século. Foi assim num tempo de pobres que tomou o primeiro contacto com a leitura de histórias, com a “literatura”. Esse menino pobre que eu fui cresceu e quis ir estudar para o liceu da época e da sua região. Na altura, era preciso fazer o exame de admissão ao liceu, mas … foi impedido por um detalhe impensável: como para isso teria que ser proposto pela sua professora primária, esta por iniciativa pessoal exigia 1.500$00 quando um camponês ganhava 18$00 por dia e era quando tinha trabalho. Era então preciso dinheiro e este não havia. Dinheiro não o tinha, o exame de admissão, esse, não o podia pois fazer.

O menino pobre que eu fui fez o protesto possível do seu tempo, protesto quase impossível no mundo opressivo do fascismo a um qualquer adulto, protesto tornado viável apenas porque era criança: escreveu ao ministro da Educação de então e curiosamente a carta ter-lhe-á mesmo chegado às mãos. Um processo foi instaurado à professora! Era ilegal o que fazia, não podia levar dinheiro a alunos seus. O inquérito foi feito na sede do concelho, onde a autoridade local, o regedor, o levou e trouxe de regresso. Tinha 10 anos. Quando esse menino pobre que eu fui regressou à aldeia acompanhado da autoridade foi recebido quase que em festa, com uma recepção dos pais dos meninos pobres de então. “Ganhámos!”, era a expressão que se ouviu. Nesse ano, todos os pais dos meninos que fizeram o exame de admissão e que ainda não tinham pago parte ou todo o dinheiro até esse dia recusaram-se então a pagar, excepto esse menino pobre que eu fui, porque não tendo feito o exame, nenhum pagamento tinha que recusar, porque nada havia a pagar. “Ganhámos!”, era a expressão que se ouviu, mas a vitória foi de curta duração. A professora passou a contornar a lei. A partir daí, só levava à admissão os alunos um ano depois de terem feito a quarta classe, quando já não eram seus alunos. Levar dinheiro, extorquir dinheiro, passou assim a ser legal. O menino pobre que eu fui aprendeu a sua primeira lição em política. Escreve ao ministro porque nessa idade acreditava no sistema, acreditava que o que estava errado era a posição da professora e não o sistema político, que era a árvore que estava estragada e não a floresta. Democracia era termo que nem sequer conhecia, nunca tinha ouvido falar. Termo proibido, como muitos outros, soube depois. Mas afinal descobriu que o problema estava também no regime fascista, pela sua própria natureza, descobriu que neste os pobres nunca poderiam ganhar.

O menino pobre que eu fui revoltado quis ir para a grande cidade, carregado com um saco de sonhos, talvez, e uns bolsos vazios de tudo, certamente. Aí cresceu como marçano, cansado na vida a subir e a descer escadas de caracol, as escadas de serviço dos prédios onde ia, a carregar com as encomendas que os clientes pediam. Mas aí também encontrou a literatura e muito mais. Clientes seus ofereciam-lhe livros, não lhos emprestavam, clientes seus convidavam-no a ler e, mais, a discutir depois os livros oferecidos e lidos, nas suas casas. Estava-se no final dos anos cinquenta, início dos anos sessenta, na rua e na praceta Afonso Lopes Vieira, em Lisboa, perto da Avenida do Brasil. Assim, dessa maneira, aprendeu o sentido da fraternidade que o livro permitia, aprendeu aí a ter o gosto de ter livros. Desse tempo, ainda se lembra dos primeiros livros de francês usados no Charles Lepierre e possivelmente na Alliance Française, de capa azul, que um neto de um Lucena pintor, carinhosamente lhe ofereceu, não lhos emprestou.

Esse menino pobre que eu fui continuou a crescer e continuou a ler. Depois, tornou-se operário fabril. Trabalhava de dia, estudava de noite algumas horas e dava gratuitamente explicações noutras a colegas seus, trabalhadores como ele, na cave do café Nova Iorque, ao fundo da Avenida dos Estados Unidos da América. O tempo não dava para tudo e adoeceu. Mais tarde, doente, na sua aldeia do interior da Beira preparou-se para os exames do sétimo ano de liceu. Uma dificuldade, duas dificuldades, na Matemática e o menino pobre que eu fui escreveu ao Palma Fernandes expondo a sua solução dos problemas que não batiam certo com a resposta, ou do livro de texto, a Álgebra Racional, ou do seu próprio caderno de exercícios, com que gerações sucessivas aprenderam a treinar-se na Matemática. Recebeu a resposta e o exercício do livro de Álgebra Racional, de um ponto de exame nacional dos anos quarenta pensa, não tinha solução (!) e quanto ao outro, ao do seu caderno, vinha uma carta a explicá-lo e a explicar onde estava o erro da sua solução. Mas vinha algo mais: vinha um pacote com livros oferecidos, não emprestados.

O menino pobre que eu fui, esse, habituou-se a ler para além dos manuais. Foi, como voluntário, fazer exame de Filosofia ao Liceu Pedro Nunes e foi à oral. Do que se lembra é de ter olhado para a prova de exame que estava cheia de sublinhados a vermelho. Lembra-se que nessa oral se falou de várias coisas que estavam na prova escrita entre as quais, talvez, de Jean Bernard e do Homem como totalidade, o que a esse nível de estudos seria uma novidade. Aí estava a marca de estudantes de Medicina, entre outros, estudantes da JUC, um ou outro preocupado com o tratado do Henri Ey, ou estudantes de linhas políticas mais à esquerda, como por exemplo Eurico de Figueiredo, mais tarde líder do movimento associativo da Universidade de Lisboa. Todos estes com forte componente humanista, como os seus trajectos pessoais o mostraram depois, todos eles com quem de vez em quando convivia no mesmo café em que à noite estudava. Do que se lembra ainda foi de que a oral correu bem, muito bem mesmo, e que no fim um membro do júri uma pergunta levantou talvez um pouco espantado: “Profissionalmente, o que faz”.

A resposta foi talvez, para eles, inesperada: “agora nada, sou operário fabril, estou com tuberculose a tratar-me em casa, na minha aldeia”. Os membros do júri levantaram-se e cada um deu-lhe uma lembrança do que tinham à mão, uma caneta, um livro, uma revista. Saiu e já fora da sala as pessoas que assistiram à oral felicitaram-no com um aperto de mão, uma ou outra com um abraço, um abraço dado a quem não conheciam, a quem tinha acabado de afirmar que estava com tuberculose e esta doença era a SIDA de então. Das ofertas dos professores às felicitações, era tudo já uma questão de livros, de memórias, de saberes adquiridos, de espaços roubados à ignorância, em suma, de humanidade, de alguma cultura, talvez. E havia livros oferecidos, não emprestados, ou com muita dificuldade comprados. Desse tempo recorda ainda encontros havidos, encontros tidos, encontros por outros sabidos com os olhos vigilantes nas noites escuras de Lisboa porque vigilantes do sistema, na casa de um casal que muito amava este país e a sua juventude, Augusto Costa Dias e a mulher Luísa Costa Dias, algures na Avenida de Roma. Eram escritores e ele dirigia a Editora Portugália, creio. De novo com livros oferecidos, livros lidos, livros discutidos. Aí aprendeu o gosto das tertúlias entre jovens que, com o carinho e a dedicação desse casal, animavam o Suplemento República Juvenil e, mais tarde, o Diário de Lisboa Juvenil, ligações entre jovens que o afastamento por doença fez perder. Aí ganhou uma outra noção: a da dádiva cultural, dada por todos aqueles actores em presença.

*Prof. Auxiliar Convidado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra


 (Continua)

2 comentários:

  1. Meu caro Prof o menino pobre teve a graça da perseverança, da inteligência e do trabalho, e quando é assim, aparece sempre quem aprecie os méritos, coisa que a sociedade actual afasta como a tuberculose da sua juventude.Eu fui menino pé descalço e tambem encontrei uma professora maravilhosa (Ana Eanes, sim irmã do presidente)que me dava explicações grátis porque não havia dinheiro lá em casa. Tudo vale a pena.Abraço amigo.

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  2. Ao Prof. Júlio Mota tenho agradecer ter sido uma referência para todos os da minha geração e, da geração dos meus pais, pelo menos para aqueles que também eram pobres. O seu exemplo deu-nos o incentivo de reflectirmos sobre os problemas sociais e politicos em que estávamos mergulhados antes do 25 de Abril. Porque também sou natural da mesma aldeia beirã já conhecia, embora de forma genérica, o seu percurso da vida, não com a pormenorização agora descrita. A ele agradeço, desta forma, para além das explicações, gratuitas, que me deu, de matemática e física, nos idos anos sessenta o exemplo de perseverança perante as adversidades da vida a que foi sujeito.
    Um abraço fraterno deste seu conterrâneo e amigo.
    António C. Amaro

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