terça-feira, 19 de outubro de 2010

Os valores de todas as coisas

João Machado

Hoje em dia muitas das pessoas que procuram acompanhar a vida política, em Portugal e lá fora, manifestam perplexidade perante a incapacidade dos cidadãos em fazer com que os seus governos e demais órgãos de soberania desenvolvam políticas conformes os interesses gerais da sociedade. Essa perplexidade é fácil de perceber em países sob ditadura, em que as pessoas estão subjugadas pela força bruta, com as consequências evidentes. As ditaduras existem obviamente para impor políticas contrárias aos interesses da sociedade, defendendo apenas os interesses de uns poucos, que não têm pejo em esmagar a maioria que oprimem. As teocracias e os estados neoliberais são exemplos deste estado de coisas. As ditaduras militares também, por mais bem intencionados que sejam os seus promotores.

Mas nos regimes democráticos ou tidos como tais a perplexidade de que falamos também existe, e de que maneira. A actual crise, que muitos procuram resumir à sua componente financeira, veio avivar essa perplexidade. Melhor dito, pôs em evidência que os governos eleitos não controlam sectores decisivos das sociedades ditas democráticas. Que a economia capitalista é regida pelos bancos e sistemas financeiros, e que estes escapam ao controlo dos governos. Contudo, parece que estes (os governos) ainda são responsáveis pelos poderes legislativo e deliberativo dos países aonde foram eleitos.

Sem dúvida que grande parte da responsabilidade por este estado de coisas cabe aos cidadãos. Nos países democráticos (ou tidos como tal) já têm acesso a informação relevante e a possibilidades de participação em muitos mecanismos que permitem a participação na gestão na vida da sociedade. Contudo esta participação é reduzida, ou não é feita da melhor maneira. Porque será?

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George Monbiot é um colunista do Guardian, que aqui nos apresenta uma hipótese explicativa, que pessoalmente julgo que devemos ter em conta. Activista político e ambiental, defensor dos direitos humanos, forte oponente das políticas de Tony Blair, o George Monbiot é autor de vários livros, como Captive State, The Corporate Takeover of Britain, The Age of Consent, e outros.

É graduado por várias universidades britânicas, participando regularmente dos programas de ensino de Oxford, Bristol, Keele e outras. Proponho-vos a leitura do artigo seguinte, que o George Monbiot publicou recentemente no Guardian:


Os valores de todas as coisas (I)


Uma das coisas mais estranhas das democracias, ocidentais e não só, é a incapacidade dos seus cidadãos em escolher as políticas que melhor os servem. A maioria tem acesso a todo o tipo de informação, mas na altura das opções as escolhas são normalmente favoráveis a interesses de certos grupos restritos, diversos, por vezes mesmo opostos aos dessa maioria. É fácil encontrar exemplos, a habitação, a educação, o ensino … As causas progressistas estão a falhar: vamos ver como elas podem ser revitalizadas.

Por George Monbiot. Saído no Guardian  em 12 de Outubro de 2010. Ver também o site de George Monbiot.

Pois cá estamos nós, formando uma fila ordeira no portão do matadouro. O castigo dos pobres pelos erros dos ricos, o abandono do universalismo, o desmantelamento da protecção que o estado proporciona: para além de escassos protestos, até à data nada de isto nos motivou para uma resistência aberta.

A aceitação de políticas que contrariam os nossos interesses é o mistério mais disseminado do século XXI. Nos Estados Unidos, operários irados não querem ter sistemas de saúde, e insistem em que os milionários paguem menos impostos. No Reino Unido parece que estamos a abandonar as conquistas sociais pelas quais os nossos antepassados arriscaram as suas vidas opondo apenas fracos protestos. O que nos terá acontecido?

Acho que a resposta nos é dada pelo relatório mais interessante que li este ano. Common Cause (Causa Comum), escrito por Tom Crompton, do grupo ambientalista WWF(1) , examina uma série de avanços recentes no campo da psicologia(2) . Oferece, segundo creio, um remédio para a moléstia que actualmente afecta todas as boas causas, desde a protecção social até às alterações climáticas.

Ele mostra como os progressistas têm sido uns trouxas em relação a um mito do conhecimento humano que rotula como o modelo Iluminista. Este mantém que as pessoas tomam decisões racionais apoiadas em factos. Tudo o que é preciso fazer para persuadir as pessoas é pôr cá fora os dados concretos: elas vão usá-los para escolherem as opções que melhor servem os seus interesses e desejos.

Um grande número de experiências psicológicas demonstra que as coisas não funcionam desta maneira. Em vez de procedermos a uma análise racional de custo-benefício, acolhemos as informações que vão ao encontro da nossa identidade e dos nossos valores, e rejeitamos as informações que colidem com eles. Moldamos o nosso pensamento sobre a nossa identidade social, protegendo-a de desafios sérios. Confrontar pessoas com factos inconvenientes vai provavelmente contribuir para que endureçam a sua resistência à mudança.

A nossa identidade social é moldada por valores que os psicólogos como extrínsecos ou como intrínsecos. Os valores extrínsecos dizem respeito ao estatuto e à promoção pessoal. Pessoas com um conjunto forte de valores extrínsecos fixam-se no modo como os outros os vêem. Valorizam o sucesso financeiro, a imagem e a fama. Os valores intrínsecos dizem respeito às relações com os amigos, a família e a comunidade, e a viver bem consigo próprio. Quem tem um conjunto forte de valores intrínsecos não depende dos elogios ou das recompensas de outras pessoas. Têm convicções que transcendem o seu interesse pessoal.

Poucas pessoas são totalmente extrínsecas ou intrínsecas. A nossa identidade social é formada a partir de uma mistura de valores. Mas testes psicológicos feitos em perto de 70 países mostram que os valores se agrupam em padrões notavelmente consistentes. Quem valoriza muito o sucesso financeiro, por exemplo, tem menos empatia, mais tendências manipulatórias, sente-se mais atraído por hierarquias e desigualdade, tem preconceitos mais fortes contra os estrangeiros e menos preocupações com os direitos humanos e o ambiente. Os que vivem bem consigo próprios têm mais empatia e uma preocupação maior com os direitos humanos, a justiça social e o ambiente. Estes valores anulam-se uns aos outros: quanto mais fortes forem as aspirações extrínsecas de alguém, mais fracos serão os seus objectivos intrínsecos.

Não nascemos com os nossos valores. Estes são modelados pelo ambiente social. Ao mudar a nossa percepção do que é normal e aceitável, a política altera os nossos espíritos tanto quanto as condições em que vivemos. A saúde universal e gratuita, por exemplo, tende a reforçar valores intrínsecos. Retirar aos pobres o acesso aos cuidados de saúde normaliza a desigualdade, reforçando os valores extrínsecos. A acentuada viragem à direita que começou com Margaret Thatcher e continuou sob Blair e Brown, que em todos os governos deram ênfase às virtudes da competição, ao mercado e ao sucesso financeiro, mudou os nossos valores. O inquérito às Atitudes Sociais Britânicas, por exemplo, mostrou que, durante este período, houve uma queda acentuada do apoio do público às políticas que presidem à redistribuição da riqueza e das oportunidades(3) .
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(1)World Wildlife Fund, criado em 1961 por organizações já existentes e individualidades empenhadas na conservação da natureza. Tem passado por várias fases e conhecido uma expansão considerável. Ver http://www.worldwildlife.org. (Nota do tradutor).



(2)Tom Crompton, Setembro de 2010. Common Cause: A Defesa do Trabalho com os nossos Valores Culturais. WWF, Oxfam, Friends of the Earth, CPRE, Climate Outreach Information Network. http://assets.wwf.org.uk/downloads/common_cause_ report.pdf.


(3)J. Curtice, 2010. Termóstato ou cata-vento? Reacções do público ao consumo e à redistribuição sob o New Labour, in Park, A et al (eds.) Atitudes Sociais Britânicas 2009-2010: 26º relatório. Sage, Londres. Citado por Tom Crompton (ver nota 2).


(Continua)

2 comentários:

  1. Muito bom, João. É realmente de dificil compreensão, tal como o comportamento dos que tendo voz se esquecem rapidamente dos que a não têm. Nunca vi uma manifestação a favor dos pobres.

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  2. Oh Luís, já tem havido muitas manifestações a favor dos pobres. Eu já estive em várias. O que acontece é que algumas pessoas não querem reconhecer que os desempregados, as pessoas que não têm casa, os sem-abrigo, os imigrantes, como pobres. E também não querem reconhecer que os baixos salários são auferidos maioritariamente por pobres.

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