quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Carta aberta aos líderes parlamentares do nosso país, a propósito de um menino pobre que eu fui (II)

(Continuação)

Júlio Marques Mota*



O menino pobre que eu fui, esse, cresceu assim. Mais tarde, chega à Universidade como estudante. Está-se no final dos anos sessenta. Vive na rua Gomes Freire. Pedagogias impostas pelas revoltas estudantis da época estimulavam trabalhar em grupo. Em Maio de 72, precisamente num grupo de trabalho, há uma discussão entre colegas sobre um problema teórico. Afirma: “não se ralem. Isso está explicado no livro do Celso Furtado, p. 128”, livro que tinha lido em Outubro do ano anterior. Todos o olharam, e um deles, hoje alto quadro do IAPMEI, propõe-lhe uma aposta a um almoço. Apostas de estudantes sem dinheiro. Aceita e faz uma contraproposta: quem quer apostar que está na quinta linha a partir de baixo? Todos apostaram, pensaram que a probabilidade de ganhar era grande e, por ironia da crise do momento presente, será que somos todos especuladores em potência? Todos eles perderam! Como? Havia um detalhe: o texto referido estava sublinhado, o livro era dele. Sem que o soubesse objectivamente, o seu cérebro teria fotografado o texto citado ao ter parado de ler para o sublinhar cuidadosamente. Não é por acaso que livro técnico lido por ele e que não seja seu é apenas livro técnico conhecido, livro seu, é todo ele um livro sublinhado, é livro, pelo menos até agora, nunca esquecido nos seus sublinhados. E assim se moldou com livros oferecidos, livros tidos, livros comprados, livros sublinhados. Desses livros, dos lidos e dos desejados, encontrou de novo a expressão de dádiva cultural num dos seus professores, um alto funcionário do Banco de Portugal. Quem diria! Tratava-se do Dr. Ramos Pereira. À noite, em grupo, ia para a sua casa, bombardeavam-no com perguntas, queriam aprender a questionar o mundo, queriam saber economia e, nesse tempo, muita dela como conhecimento estaria fora dos manuais utilizados, dos manuais estilizados. E muitos desses livros que nessas noites tocaram, que desejavam muitas vezes ler, vieram, muitos anos depois, parar à Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, graças a uma figura de relevo na nossa Universidade, o Professor Romero de Magalhães e também à viúva para quem esta Faculdade seria o local onde o marido mais desejaria que os livros ficassem. Chegou por esta altura à Universidade como professor. Sou professor universitário há trinta e sete anos.

Esse menino pobre que eu fui e que já não sou, bem mais tarde, leu um artigo de Bertrand Poirot-Delpech, da Academie Française, em que se relatava as mudanças havidas nos tempos de Mitterrand no processo de admissão a Sciences Po, uma das mais importantes instituições universitárias de França. Com essa mudança, uma pergunta passou a seleccionar a admissão dos alunos àquela escola: fale-nos de um livro de que tenha gostado tanto que ache indispensável que os seus amigos o leiam, frase que aqui cito de memória. No mesmo artigo, o autor relembrava que o livro era o amigo que espera sempre por nós, o amigo que está sempre disponível na nossa biblioteca para estar connosco. No mesmo artigo, o autor confirmava assim o que tinha sido a minha vida de estudante, um autor que pertencia a uma instituição de referência, a Academie Française.

Enquanto professor, achei que devia tomar esta ideia do livro como pano de fundo nas orientações pedagógicas das disciplinas que vou leccionando. Todos os anos falo da necessidade de os estudantes terem, lerem, guardarem livros, da necessidade de os estudarem, de aprenderem a guardá-los e a tê-los como companheiros e amigos de toda uma vida, de aprenderem a dialogar com eles. Todos os anos, “exijo” que os meus alunos leiam livros ditos de leitura complementar ou de cultura geral de base económica. O estudante universitário português em geral não lê, é verdade, porque provavelmente ninguém está interessado ou não está empenhado em que isso aconteça. Este ano, por exemplo, “exijo” a leitura de A Globalização: o pior está para vir, de Patrick Artur e Marie-Paule Girard, e de Livre-Comércio, de Graham Dunkley. Desta experiência que já leva alguns anos, posso concluir que, pelo menos nestas circunstâncias, os nossos estudantes lêem, os nossos estudantes gostam de ler. Precisam é que não se seja indiferente relativamente a eles, precisam é que se seja exigente para com eles, precisam também de sentir um certo sentido de dádiva de que acima falei. Mas sinto, agora, como conjunto, todas estas condições começam a escassear. Lamento senti-lo.

Esse menino pobre que eu fui e já não sou envelheceu, e um ciclo está-se assim quase a fechar, estou à beira da passagem à reforma que ainda não pedi somente por um pouco de resistência à contra-cultura criada com a reforma de Bolonha, que não pode ser desculpada com a crise porque lhe é anterior, e dessa resistência saio seguramente vencido, e por um pouco também de solidariedade com colegas de trabalho que de outra maneira talvez não pudessem usufruir de direitos a que têm direito, num Estado de direito. Resistência à contra-cultura, ao universo de simplificação no ensino, onde qualquer dia já nem livros serão necessários, começando-se inclusive a falar de futuras gerações que poderão nem sequer vir a saber o que é um livro. Lamentavelmente, a crise e por outras razões levanta a questão de bolsas de empréstimo de manuais escolares, embora pretendo-se com carácter universal, acabará por se destinar a quem mais precise: os pobres actuais, trabalhadores ou não, ou os novos pobres que a crise está poderosamente a criar.

Esse menino pobre que eu fui e já não sou, residente na memória de quem já não é, ontem, ao ver e ouvir alguns deputados na Assembleia da República, interiormente gritou em mim, gritou por todos os meninos pobres que conheceu e não conheceu, que conhece e não conhece, por aqueles a quem agora querem privar das memórias, memórias de ler, sublinhar, reter e guardar os seus livros, as memórias afinal onde se expressam os seus trajectos pessoais. Descobri que os nossos representantes no Parlamento entendem que os filhos dos pobres que seguramente não têm dinheiro para comprar os manuais aos preços que têm, não têm direito a tê-los, a lê-los com os seus sublinhados, a falar com eles; enfim a desenvolver os diversos tipos de memória ou, como dizem os especialistas, a criar e a desenvolver as memórias várias e de vários tipos que nos ajudam a fazer de nós próprios pessoas. Não, os filhos dos pobres, meninos pobres como eu fui, não têm direito a esse direito fundamental, a esse registo dos seus trajectos, das suas emoções, das suas dificuldades intelectuais, não, não têm direito a ser, e recordemos que não há conhecimento sem memórias.

E, afinal, apesar da crise parece-nos que tudo é simples. Bastava haver uma política de ensino, uma política de cultura, uma política de educação, uma política efectiva do livro escolar. Mas também aqui predominam os grandes interesses financeiros.

Relato um curioso pormenor: um velho editor deste país solicitou um crédito a uma dada Instituição bancária e, nesta, a quem hoje podemos dizer que é um alto funcionário bancário profundamente sério. Este, meu antigo aluno e meu amigo pessoal, enviou dois analistas de crédito entrevistar o editor e estudar o processo. Profissionais competentes e conhecedores, e o veredicto foi inexorável: crédito a não aconselhar até porque não edita livro escolar. Os nossos analistas, analistas da rentabilidade do capital, perceberam bem que o que dá dinheiro é o livro escolar, o livro afinal que os pobres não podem comprar. É assim que se compreende as aquisições de editoras por um ou outro grupo dominante, como o é o grupo Leya, de Paes de Amaral, para quem vender livros será a mesma coisa que vender tremoços e possivelmente nem uma coisa nem outra saberá fazer. Vender livros, seguramente que não, e isso, eu sei-o bem. E os livros de qualidade no mercado português começam a ser uma raridade. E creio que por essa via é a própria cultura que passa a estar amordaçada.

Os nossos representantes no Parlamento propondo um sistema de livros emprestados e devolvidos depois mostraram que estão exactamente do lado destes editores e da desregulação no mercado de livro escolar que por ausência de política ou vontade política se mantém assim desde há muito. Em nome, talvez, da soberania dos mercados, da famosa eficiência dos mercados, os nossos representantes mostram-se assim concordantes com os analistas do capital acima referenciados.

Que isso seja pretendido pelos deputados do PSD e CDS, tudo bem, entende-se, pois a ideia de eficiência dos mercados está de acordo com a sua orientação política; por isso, preferem não tocar no capital. Que os socialistas se esquivem a votar no mesmo sentido, argumentando que existe já legislação que permite o empréstimo de manuais escolares, entrando assim na mesma lógica, pode lamentavelmente não ser estranho, atendendo à prática governativa dos últimos anos. Mas que os outros, os deputados do BE, do PCP e do PEV, se tenham deixado cair, a contragosto talvez, numa lógica de caridade e de chancela da pobreza ou de uma dádiva agora quase que impossível (e talvez também um pouco gratuita) que manteria também a lógica do mercado é triste e também politicamente incómodo.

Quanto custa produzir um livro? Quanto custa seleccionar um leque de livros por disciplina e por área, em vez das dezenas talvez que por aí há, a editar sob contrato com o Ministério e de acordo com os programas que ele próprio minuciosamente estabelece e com uma análise de custos cerrada? Agora, em que o actual sistema de ensino tem levado a que muitos dos nossos estudantes universitários possam nem sequer saber fazer operações algébricas, deixem-me ser irónico, deixem-me dizer-vos que talvez custe um quarto ou um terço de uma dúzia de euros por unidade. Falar então de caridade e de livros emprestados, neste contexto, no quadro destes números, parece-me incómodo para todos nós e humilhante para quem precisa.

O menino pobre que eu fui e já não sou, mas que continua bem vivo no adulto que em seu lugar se criou, e de que este texto é um resultado, esse menino, de raiva, gritou e o adulto em que habita, esse, o acontecimento da Assembleia lamentou, porque sentiu que o que falta então é uma política séria na educação, uma vontade política de assegurar que todos possam ter os seus próprios livros, de todos sentirem a necessidade de os ter. Por outras palavras, do que precisamos, penso eu, é que os nossos representantes sejam capazes de sentir em profundidade o pulsar do país real de que todos fazemos parte, de nele e a essa profundidade estarem ao seu serviço, ontem, hoje, amanhã. Se não mudarmos, se continuarmos como agora, talvez os filhos e os netos dos pobres de hoje e de amanhã peçam contas aos que, por contraponto, são ou serão os ricos de cada momento e ou aos políticos que eles considerarem como responsáveis pela situação. E, então, os custos serão bem mais elevados. Façamos politicamente alguma coisa de muito sério pela política. No caso em presença, respeitemos aqueles que, como resultado das politicas neoliberais sucessivas, têm estado a engrossar as filas daqueles que vêm bater às portas do Estado-Providência a pedir ajuda, portas estas que os governos, país a país na Europa, sob pressão dos mercados financeiros têm estado a fechar. Esquecem que assim estão a pôr em causa a construção e a realização de homens, de muitas das crianças de hoje, que serão as futuras gerações de amanhã. O exemplo dos livros, um pormenor importante na montanha de pormenores não menos importantes da situação de crise, é apenas um exemplo do caminho que se está seguir: a submissão aos imperativos determinados pelos mercados. Isto é tanto mais grave quando se afirma que a consolidação orçamental é feita também em nome das gerações futuras.

São emoções, são memórias, importantes seguramente, que são assim quase esquecidas ou nunca desenvolvidas, perdidas nos mecanismos da crise e das respostas que pelo sistema a esta são dadas, através das condições que os mercados financeiros continuam a impor.

Curiosamente, e ao contrário do que dizem com a construção dos seus modelos matemáticos, os mercados financeiros de hoje regulam-se quase que exclusivamente por uma lógica de tão curto prazo, porque ausente a noção de futuro, que não precisam sequer de memória também! É conhecida a pequena “anedota” de um alto quadro da banca que chama a atenção de um trader sobre as apostas que está a fazer sobre dados títulos, obrigações no caso, sem ter em conta os valores históricos dos respectivos títulos. A resposta do trader foi implacável. Importa-me o valor de amanhã que será criado com o ambiente de amanhã, e esse não tem nada a ver com o que foi, mas sim com o que será!


*Prof. Auxiliar Convidado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra





(Continua)

Sem comentários:

Enviar um comentário