quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Senhores Singulares -( O romance da revelação do Brasil)- 9 - por Sílvio Castro

(Continuação)

Coaracy VI



Um dia contei a Coaracy que eu tivera um sonho que me apavorava e que não conseguia esquecer. Eu sonhara que caminhava sozinho pela floresta que era aquela nossa e ao mesmo tempo era uma outra. Era uma floresta que se abria sempre aos meus passos e não se fechava jamais. Mais eu andava, mais a selva se ampliava, as árvores se abriam em passagens largas e as flores se multiplicavam. Mas eu não me sentia bem naquela selva; era como se por detrás de tudo certa mão conduzisse plantas e folhas para me atirarem a um lugar aonde eu não queria chegar. Mais caminhava, mais me sentia asfixiado pelo caminho que se abria silencioso e frio. Assim foi por um tempo que parecia não acabar jamais e eu corria corria corria e as plantas e as flores e as cores me asfixiavam cada vez mais. Até que na corrida louca gritei alto e me senti cair num precip¡cio que não tinha fim.

Coaracy me escutou tranquilo e me disse que não era assim que se devia sonhar. O sonho não deve vir sem ser chamado; devemos sempre chamá-lo. Assim fazendo o nosso sonho chega e cobre o nosso sono. Coaracy me disse que eu devia chamar o sonho que caira no precipício e com ele retomar o caminho que eu desejava.

Vossa Senhoria tem muita paciência em escutar esses meus contos e me deverá perdoar se muitas vezes me ausento enquanto conto. Não é por falta de respeito, pois Vossa Senhoria me mereceu desde o primeiro momento que a vi tantos e tais que não posso senão dizer que me sinto feliz em demonstrá-los. Mas, algumas vezes me é impossível evitar de perder-me nas brumas das lembranças das coisas que me mudaram do que eu era para o que sou agora. Quando isso me acontece, parece que saio de mim mesmo e aquele que sempre fui pode ver de fora o que sou, mesmo quando esse novo eu tem somente a consistência do fumo, da brisa, das sombras.

Por isso tudo quero vos falar de uma experiência que foi essencial nessa minha nova vida e que me abriu novos caminhos. Não só para o novo ser que lentamente se criou em mim, mas também para avivar e esclarecer aquele que antes eu era.

A nudez dessa nova gente que encontramos desde o primeiro dia revelou-se como um choque que eu não sabia como explicar. Quando o nosso esquife se aproximava da praia e o nosso Capitão gritava entre as ondas altas aos homens na praia para que deitassem por terra suas armas, devo confessar que eu não distinguia bem essas armas, como o fazia Nicolau Coelho. Eu via muitos homens em pé, rijos, mas ao mesmo tempo tranquilos. Via-os como se apresentavam, completamente nus. Nesse primeiro conhecimento eu começava a viver a experiência que por longo tempo me atordoou.

Descemos à praia e quanto mais aumentávamos o conhecimento com a nova gente, mais a sua nudez me deixava sem saber das coisas.

Vou tentar explicar melhor a Vossa Senhoria: eu estava ali diante daqueles homens nus e, ainda que os visse, não os via. Era como se desejasse não vê-los, ainda que os meus olhos não se despregassem deles. Quando mirando-os eu sentia a sensação de não vê-los, o que em verdade eu via era a mim mesmo. Eu me fechava nas minhas roupas para não vê-los nus. Mas, Vossa Senhoria me poderia dizer por que eu fazia assim? Por mim, ainda agindo dessa maneira, eu não encontrava razões. Somente podia continuar a ver, não vendo; a procurar saber, não sabendo nada.

Depois o grupo aumentou e aos homens se acrescentaram jovens mulheres, nuas também elas. Vossa Senhoria que aqui está sabe como é. Porém, com o devido respeito para com Vossa Senhoria, não acredito que saiba da mesma maneira por mim vivida então.

As jovens mulheres logo se apresentaram com toda uma beleza que nós não conhecíamos. Em meio aos seus e aos nossos elas caminhavam com uma tal naturalidade que encantava. Riam, brincavam, corriam, entravam e saiam d'água. Então seus jovens corpos eram mais visíveis, banhados pela água do mar, brilhantes sob os raios do sol. Seus corpos pareciam da cor do calor e da luz constante da terra nova.

Vendo-as assim, mais do que antes, diante da nudez dos homens, eu agora me cobria com meus panos como que temeroso de estar também eu nu.

Eu sempre fui muito tímido com as raparigas e as senhoras da Corte; porém, nunca me senti fechado comigo mesmo diante delas e de seus sorrisos. Não me tirava atrás quando devia com elas bailar. Não me atemorizava os suaves toques de suas mãos, nem o roiçar de minhas vestes nos seus vestidos encorpados. Todos diziam mesmo que o jovem Afonso Ribeiro era muito garboso e elegante. Eu então gostava de escutar esses elogios; mas se os repenso vejo neles a força que me levou à minha desgraça. Minha cabeça se enche de muitos pensamentos, recordações e lembranças infelizes; meu coração aperta e meus olhos mais que nunca se cobrem de uma nevoa banhada.

Estou assim com os meus infelizes pensamentos quando sinto ao meu lado o bom Pero Vaz. Veja, Afonso, como são belas estas raparigas. Veja que belos corpos, que vida exprimem em cada gesto. São belas e livres; olha como não têm vergonha de nada, nem mesmo de suas vergonhas!...

Pero Vaz assim me falava, mas eu não via nada porque tinha medo de contemplar aquela nudez.

Depois que descobri que tinha medo, fiquei mais tranquilo. Passando os dias e acumulando as experiências de minha nova vida, comecei a olhar bem direto no medo que eu sentia a cada visão de um corpo nu. Principalmente diante daquele de uma mulher.

Foi Coaracy mais uma vez quem me ajudou. Eu nunca notara que o meu amigo, como todos, sempre se mostrara nu. Então comecei a pensar porque nunca vira a nudez de Coaracy. Como acontecia com todos, ele nada me escondia, mas eu nunca prestara atenção às diversas partes do corpo do meu amigo. Para mim ele sempre fora uma só realidade. Certamente Coaracy sempre se apresentou com o corpo pintado, de duas ou mais cores. Era sempre vi muito faceiro, Coaracy, mas isso nada diminu¡a de sua sabedoria.

Observando Coaracy, com o tempo comecei a sentir-me mais sereno com a nudez dos demais, mesmo aquela das mulheres. Passei a não me turbar sempre com a visão direta da boceta de uma rapariga que corria para o banho do rio. Então me recordava das palavras de Pero Vaz são cerradinhas que é como não vê-las. Mesmo quando, de repente, nas longas caminhadas pelo bosque ou mais para dentro da floresta defrontava-me com dois corpos que se agitavam como duas corças no amor, não mais me surpreendia.



Agora posso dizer a Vossa Senhoria que tudo se desenvolveu de maneira tal em mim que eu não mais fechava ou desviava os olhos diante da nudez de meus novos amigos. Agora eu já via as raparigas inteiras. Era como se não estivessem nuas, como se suas peles mesmas ou as belas pinturas multicolores com que muitas vezes se enfeitavam fossem os vestidos delas.

Tudo foi indo assim até que num entardecer, na beira das águas de um braço de rio, vi Tainá, a filha mais nova de Coaracy.

(Continua)

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