sábado, 30 de outubro de 2010

Carvalho Calero, na tradição galega da Linguística românica

Carlos Durão

Passados 20 anos da morte de Ricardo Carvalho Calero, e 100 do seu nascimento, continua na
Galiza o silenciamento da sua pessoalidade e da sua obra, tanto por parte das instituições como
daqueles inteletuais, de “direitas” ou de “esquerdas”, que decidiram seguir a política autonómica
isoladora do galego, a mesma do Estado Espanhol. É por isso que as associações reintegracionistas
galegas estão a celebrar o Ano Carvalho Calero com diversas atividades, culturais, pedagógicas,
lúdicas, que promovem a sua obra linguística e lembram a sua vida devotada à comunidade cívica
galega.

Lembremos brevemente alguns pontos da sua biografia. Nado em Ferrol no 1910, fez ali os seus
primeiros estudos, e ali realizou as suas primeiras atividades culturais e políticas galegas. Fez em
Santiago de Compostela estudos universitários, de Filosofia e Direito, relacionando-se com outros
estudantes do Seminário de Estudos Galegos e do Grupo “Nós”, nos anos da ditadura de Primo de
Rivera, e participando no movimento de resistência universitária.

Terminados os estudos de Direito (e posteriormente os de Filosofia), foi co-fundador do Partido
Galeguista e elaborou, com outros, o Anteprojeto do Estatuto de Autonomia da Galiza, que era
republicano e federal, e que foi plebiscitado e aprovado pouco antes da insurreição militar
espanhola que provocou a chamada guerra civil.

R. Carvalho Calero estava em Madri nessas datas, porque ali se apresentara a um concurso de
catedrático de liceu. Fiel à República, incorporou-se como miliciano ao seu Exército, participando
na defesa de Madri, e combatendo posteriormente noutras frentes. No final da guerra foi preso e no
1941 libertado sob vigilância, só lhe sendo permitido dedicar-se ao ensino privado.

No após-guerra desenvolveu, precariamente, o seu labor docente, de investigação e de criação
galega, no ensaio, no romance e no teatro. Desde o 1950 colaborou nos trabalhos da Editorial
Galaxia. E desde meados dos anos 60 foi professor de Língua e Literatura Galegas na Universidade
de Santiago, conseguindo essa Cadeira no 1972.

Quando se instauraram na Galiza as instituições autonómicas, no remate da ditadura, foi-lhe
encarregada a parte principal na Comissão que elaborou as Normas Ortográficas do Idioma Galego.
A sua formação linguística inclinou-o à recuperação da ortografia galega histórica, coincidente com
a normal nos países lusófonos, mas outros componentes da comissão discordaram diametralmente,
advogando por uma ortografia que não criasse problemas para o ensino do espanhol, isto é: uma
ortografia espanhola, junto com uma conceição da língua como sendo só espanhola e independente
da portuguesa.

Carvalho Calero demitiu-se, e a comissão foi dissolvida. Desde então, a sua posição dita
“reintegracionista” enfrentou-o aos funcionários ditos “isolacionistas”, que detinham o poder
autonómico. Mas o seu prestígio foi em aumento entre os estudantes universitários, como também
entre as associações culturais galegas que iriam conformando o campo reintegracionista: por isso
foi marginado na sua Cadeira e, na sua reforma, foi-lhe vedada qualquer participação linguística nos
meios “oficiais”.

No 1982 foram enfim impostas por Decreto umas novas Normas Ortográficas (“Morfolóxicas”),
ainda hoje vigentes, que consolidaram a satelização da nossa língua pelo castelhano, e o seu
conseguinte afastamento do português.

Sem renunciar nunca aos seus princípios, Carvalho Calero desenvolveu um intenso labor cultural,
arrequentando as novas gerações independentes do oficialismo, pelas que foi repetidamente
homenageado, ao tempo que foi postergado e odiado pelas autoridades. E continuou a sua obra de
criação e ensaio, consequente com os seus princípios continuadores da tradição galego-portuguesa.

Mas é hora de deixar que nos elucidem as palavras do nosso grande homem, ilustre máximo vulto
representante do movimento reintegracionista, ao lado de Guerra da Cal e Rodrigues Lapa, seus
amigos e colaboradores. Pela sua atualidade, as citas merecem certa extensão. Deixo as grafias
originais das diferentes datas de publicação.

“Umha língua tam ameaçada como o galego nom pode sobreviver senom apoiando-se nas demais
formas do sistema, quer dizer, reintegrando-se no complexo luso-galaico do qual geneticamente
forma parte [...] O galego ou é galego-português ou é galego-castelam [...] Umha concórdia
ortográfica, quando menos, e umha inteligência na opçom das formas lingüísticas que integrariam,
sem prejuízo das peculiaridades do galego, o veículo geral de comunicaçom, seriam
indispensáveis./ Deste jeito, seríamos o que somos, voltaríamos a ser o que fomos: o romance mais
ocidental, nom esnaquizado em dous anacos isolados, senom reintegrado numha unidade
sistemática que nom exclui a autonomia normativa” [...] “Alguns demagogos querem manter este
estado de alienaçom, e rejeitam como artificiosas as formas restauradas. Comovedora homenagem
de ignorância ou fanatismo ao mito do galego popular, se nom se trata de uma maquiavélica
manobra encaminhada a fazer impossível a supervivência do galego” (1)

“Com diversos matizes, o reintegracionismo propugna a rectificaçom da deriva anómala do galego
para o iberorrománico central, cujo arquetipo é o castelhano, e a recuperaçom da órbita natural do
sistema” (2)

“Algumas pessoas desinformadas tendem a apresentar-me como um inovador, como um
revolucionário polo que se refere ao conceito da nossa língua, mas as minhas opiniões, expressadas
naturalmente conforme aos meus próprios parâmetros pessoais, são sem embargo aquelas opiniões,
aqueles critérios que tradicionalmente se professam dentro do galeguismo. Uma doutrina
revolucionária é, por exemplo, a de que o Galego é uma língua que deve ser considerada
absolutamente independente dentro das Línguas da Românica. Isso sim pode ser considerado
inovador, ainda que com um tipo de revolução completamente contrário à realidade da experiência
histórica [...] eu realmente não creio que se me pode considerar um dos pais do reintegracionismo.
Mais bem sou um dos filhos, por que o reintegracionismo nasce cientificamente com o Romanismo,
e politicamente com o Galeguismo. [...] a mim correspondeu-me, como a outros colegas e
correligionários, precisar consoante as circunstâncias do meu tempo, uma doutrina que explicita ou
implicitamente era a doutrina geral do Romanismo e os propugnadores do Galeguismo professavam
desde que surgiram à luz. [...] O reintegracionismo, portanto, não é outra cousa que aquela doutrina
que quer devolver a sua própria natureza ao Galego.”
“[...] todo o mundo sabe que eu professo em matéria de Política Linguística as ideias tradicionais, as
ideias de Castelão, e como essas ideias são contrárias às ideias que reinam no mundo oficial, no
aspecto cultural, pois, não tenho muito predicamento, ao parecer, dentro dessas esferas.
Consideram-me como um herege, como um cismático, ou como um corruptor da mocidade, e se me
exclui positivamente dos organismos oficiais. Isto é evidente, ainda que tamém é certo que entre as
pessoas que formam parte desse “holding” cultural que hoje nos governa há gentes que conservam
um respeito pessoal para mim, alguns mesmo um afecto pessoal, mas é verdade que se me
considera um obstáculo para o desenvolvimento duma determinada Política Linguística e se me
exclui decididamente em geral do mundo cientificoliterário que está servido por pessoas afectas às
ideias reinantes, que são mais bem isolacionistas do que reintegracionistas [...]” (3)
“É certo que en determinadas reunións de lingüistas, por exemplo a celebrada en Tréveris, à que
non asistin, houvo duas ou tres persoas que se permitiron combater asañadamente os meus pontos
de vista. En realidade eles son os orixinais. Eu sigo a tradizón, eles son os revolucionários.”(4) “Eu
neste aspecto son absolutamente ortodoxo. Os heterodoxos son os que discrepan desta tradizón
galeguista na que eu estou plenamente incorporado” (5)
“Entón constitui ao meu xuízo unha cegueira dos políticos que nos governan, induzidos por
estudiosos ou técnicos que non posuen a necesária amplitude de espírito para ver o galego cunha
conceizón diacrónica, tratar de esmagar a estas persoas, a este grupo que propugna a reintegrazón
do galego dentro do sistema ibero-románico occidental; grupo que se ten acreditado como
numeroso, como responsável e como ben informado [...] Non me parece correcta a actitude da
Administrazón negando, por exemplo, a sua proteczón económica a empresas culturais importantes,
polo feito de que a expresón formal ortográfica dos solicitantes deses apoios estexa orientada à
reintegrazón do galego ao seio do sistema galego-portugués. En realidade, eses médios económicos
[...] son [...] subvenzóns, son bens, cuxo proprietário é o povo galego. E os reintegracionistas, a
verdade, cremo-nos parte dese povo galego, e nos parez unha actitude abusiva, absolutamente anticonstitucional, aquela que nos priva de disfrutar dunha proteczón económica que nos parece ser un
ben ao que devemos ter acceso todos os galegos” (6)

Mais sobre atividades do Ano Carvalho Calero http://www.carvalhocalero2010.net/ (Está prevista
para o dia 30 a inauguração dum monumento a R. Carvalho Calero na Alameda de Santiago de
Compostela)

Notas:


(1) “Sobre a nossa língua”, em Problemas da Língua Galega, Sá da Costa Editora, 1981, pp. 19-21,
conferência no Clube Lingüístico da Crunha, 7 fevereiro 1979
(2) “O português na Galiza”, em Letras galegas, Agal, pp. 24-25, 1984 (texto de 1983)
(3) “Entrevista com o professor Dr Ricardo Carvalho Calero”, por Ramom Reimunde, revista O
Ensino, nos 18-22, 1987, Homenagem ao professor Carvalho Calero, pp. 14-17
(4) em “Conversas en Compostela con Carballo Calero”, M.A. Fernán-Vello/F. Pillado Mayor, Eds.
Sotelo Blanco, 1986, p. 178
(5) ibid., p. 233
(6) ibid., p. 239-240
Algumas obras de R. Carvalho Calero: poética: Pretérito Imperfeito (1980); Futuro Condicional
(1982); Cantigas de Amigo e Outros Poemas (1986); Reticências... (1990).
ensaio: Sobre língua e literatura galega (1971); Estudos Rosalianos: aspectos da vida e obra de
Rosalia de Castro (1979); e Libros e Autores Galegos I (1979); Problemas da Língua Galega
(1981); Livros e Autores Galegos II (1982); Da Fala e da Escrita (1983); Letras Galegas (1984);
Escritos sobre Castelao (1989); Estudos e Ensaios sobre Literatura Galega (1989); Do Galego e da
Galiza (1990)
obra dramática e narrativa: A Sombra de Orfeu, Farsa das Zocas, A Árbore e Auto do Prisioneiro
(1971); Teatro Completo (1982); A Gente da Barreira e Outras Histórias (1982), Narrativa
Completa (1984); Scórpio (1987)
R. Carvalho Calero era membro ordinário da «Academia das Ciências de Lisboa», membro de
honra da «Associação Galega da Língua» (A.Ga.L), da «Associação de Escritores em Língua
Galega» (A.E.L.G.), das «Irmandades da Fala», e da “Real Academia Galega” (onde, com o seu
colega Jenaro Marinhas, manteve precariamente a dignidade da tradição da linguística românica)

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