segunda-feira, 18 de outubro de 2010

"Common Decency”

Fernando Pereira Marques

George Orwell


Em entrevista ao Le Monde, o sociólogo Alain Touraine - meu antigo professor -, falando da França, afirmava que se vive no tempo da “mini-política”, em que se baixa o nível dos debates para iludir as verdadeiras questões e se é incapaz de responder às profundas transformações dos dias de hoje.
Mutatis mutandis tais asserções são aplicáveis também entre nós. Quando se observa o funcionamento das instituições, dos partidos, do sistema político, fica-se preocupado com múltiplos sintomas de imaturidade e de fragilidade democráticas. Por exemplo, no estilo dos debates parlamentares, onde continua a predominar um tom demagógico, superficial, frequentemente roçando o exibicionismo histriónico, que já não se usa nas democracias consolidadas; ou, ainda, no carácter artificial que ganha a salutar conflitualidade entre partidos, entre oposição e maioria, com o recurso à mediatização da retórica enfatuada de porta-vozes ou ao sistemático elevar de voz entre líderes, em que se joga com as palavras, mas se secundarizam os conteúdos e se escamoteia a complexidade das situações. Para não falar da degradação aparelhística e clientelar dos partidos, em particular dos dois principais, ao nível do pior do rotativismo oitocentista.

Acontece, assim, por entre declarações e contra-declarações, que juntamente com os dramas (terríveis) do futebol alimentam a espuma dos dias mediática, ver-se o PS agitar, como grande acusação, o facto do PSD se estar a mostrar liberal, mais ou menos “neo”. Mas onde está a surpresa? Ou seja: será que constitui argumento de fundo o PSD ter propostas e perspectivas diferentes das do PS? Ou será que o busílis é o PS ter pouco que o diferencia do PSD e a verdadeira questão ser a disputa de um mesmo espaço eleitoral? Aliás, e pelo contrário, é positivo e necessário que cada partido assuma as suas diferenças, construa uma identidade programática e estratégica que permita aos eleitores estabelecer os seus alinhamentos e estruturar os conflitos. Tais diferenças não devendo impedir as convergências necessárias para garantir a governabilidade em nome do interesse nacional.

O que urge entre nós – e não só entre nós – é que se instale na vida política, na democracia e na sociedade em geral, aquilo a que George Orwell chamava a “common decency”. Na verdade, o escritor inglês que sob esse pseudónimo se notabilizou, além das obras de ficção (como o presciente 1984), deixar-nos-ia vários testemunhos notáveis (recorde-se a Homenagem à Catalunha) e menos conhecidas reflexões de carácter doutrinário onde expôs a sua concepção de socialismo. Para ele, pouco atreito a grandes especulações teóricas e que tinha conhecido bem, durante a Guerra Civil espanhola, os frutos do dogmatismo marxista-leninista, no cerne da ideia de socialismo devia estar o sentido de “common decency”, que poderá traduzir-se em português por “decência ordinária”. Ou seja, uma síntese dos valores morais das pessoas comuns que não perderam o sentido da honra, da honestidade, da modéstia, da delicadeza, do valor da palavra dada, da coerência entre o dizer e o fazer, do respeito pelo outro, da justiça e da dignidade no trabalho e na vida.
Porque Orwell, que arriscou a pele e pegou em armas na defesa das suas convicções, não partilhava de certas mitologias providenciais, nem acreditava em entidades portadoras do sentido da História como o “proletariado”, e muito menos no “homem novo” pretensamente produzido pelos totalitarismos de qualquer cor. Antes considerava existir essa espécie de sentido moral elementar capaz de permitir aos cidadãos distinguirem o justo do injusto na comunidade a que pertencem e, deste modo, pugnarem por uma organização política e social onde deixem de ser encaradas como normais as obscenas desigualdades na distribuição da riqueza e de rendimentos, a desumanidade na utilização dos trabalhadores, a condenação dos idosos à solidão e das novas gerações à precariedade e à marginalidade social, a magnanimidade da Lei com especuladores ou supostos empresários que se mantêm respeitáveis quaisquer que sejam as malfeitorias praticadas. Aspectos indecentes do actual darwinismo capitalista que subvertem a democracia e matam as liberdades, na medida em que os políticos tornam-se mandatários, não de quem os elege, mas dos interesses organizados que na realidade decidem graças à opacidade corruptora gerada pelo sistema.

Os governantes hoje, de esquerda, de direita, de centro, são marionetas nas mãos dessas entidades tornadas transcendentes chamadas “os mercados”, desnudam-se de convicções para salvaguardar as prerrogativas de uma ilusão de poder, são fortes com os fracos e dobram-se perante a tirania da economia e da finança mundializadas, gerem o imediato das eleições mais próximas e menosprezam o futuro. Por isso perdem a confiança e o respeito dos cidadãos, assim se minando o tecido e o contrato sociais, como se observa através das crescentes manifestações de revolta das populações. Acresce, inclusive, que continuando-se por esta via, fracassará o projecto de alcance civilizacional da construção de uma Europa unida de povos livres e prósperos.

Em suma, precisamos de “common decency”. O socialismo, afinal, não devendo ser mais do que a introdução dessa decência na sociedade e na vida. O que implicará libertarmo-nos do império da “mini-política”, despertar da alienação consumista e hedonista, tomar consciência dos direitos e também dos deveres agindo em conformidade, exigir de quem governa que seja radical, isto é, que vá às raízes das coisas, aos verdadeiros problemas de que depende o bem comum.

3 comentários:

  1. Quando ouço falar em darwinismo capitalista põem-se-me os cabelos em pé, já que a teoria de Darwin não teve nada a ver com questões políticas nem sociais (falarei disso num próximo texto). Trata-se dum verdadeiro abuso e, como tal,é uma designação que deveria ser evitada pelas pessoas cultas.É o neoliberalismo, com certeza. De resto, gostei muito do texto. Lembro esse extraordinário "Homenagem à Catalunha", um daqueles livros que deviam ser de leitura obrigatória por tudo o que nos faz perceber sobre a Guerra Civil de Espanha e, também, por esse conceito de "common decency" que o Fernando Pereira Marques tão bem nos explica. Quanto a Alain Touraine, não esqueço a conferência dele a que assisti na Gulbenkian nos anos 90 do século passado, salvo erro a propósito do lançamento do livro "A Sociedade Pós-Industrial",e onde referiu os novos embriões de organização social para fazer frente a uma nova fase da sociedade capitalista diferente da anterior devido à emergência das tecnologias da informação.O que ele propunha, na altura, era inédito e, quanto a mim, continua na ordem do dia.

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  2. Foi em 1981 (o tempo passa...) e o livro foi «O Pós-socialismo». Era inovador na medida em que pela primeira vez ouvíamos alguém formular uma teoria que a nossa prática política, empiricamente, nos ensinara - há vida para além dos partidos. Estou a falar de memória - embora tenha o livro a poucos metros, mas julgo que era nessa obra que Touraine lançava a teoria dos «movimentos sociais» alternativos à organização partidária, afinal tão ligada ao século XIX e á fase aguda da Revolução Industrial. O livro dele que mais me impressionou, não sei se está editado em português, foi (é) «Critique de la modernité». Ando há tempos para lhe dedicar um post. Muito bom, este texto do Fernando Pereira Marques.

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  3. É isso mesmo,Carlos. Em 81, imagine-se!

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