domingo, 3 de outubro de 2010

Ilusão

Marcos Cruz


Na máquina de sujar em que estamos metidos, o stress é o glutão mais eficaz. Tira a mais pequena nódoa de limpeza num abrir e fechar de olhos. Com a desvantagem de que nem é preciso comprar. Ele vende-se. É completo. Produto e promotor, tudo incorporado, dois-em-um que divide como quem corta relva e une como quem varre o chão. Sem darmos por ela, fez de nós seus aliados na luta contra o tempo: nós crentes de que a luta era contra a passagem do tempo, ele ciente de que a luta era contra o seu aparecimento. Uma coisa e outra, claro, são inúteis. No limite, tudo é: o stress não vive menos iludido do que nós. Ele, como o tempo, como nós, também passa. E talvez a melhor maneira de lhe mostrar isso seja fazê-lo crer, como ele nos faz em relação ao tempo, que lutamos contra a sua passagem, estando cientes de que lutamos contra o seu aparecimento. Por outras palavras, viver bem na sua companhia. Dar-lhe o melhor. Dar-lhe amor. Dar-lhe tempo.

Um dia destes fui sujeito a um banho prolongado de lugares-comuns, cascata refrescante de palavras sobre o meu corpo confuso, cansado, sujo. De início, lutei contra o paradoxo de palavras mais velhas do que a sua sombra me tirarem anos (não de vida, mas) de cima dos ombros. No fim, rendi-me à mensagem-massagem que por mim escorria: todos vivemos num lugar-comum. Para quê, então, sofisticar? Para quê o requinte da ironia, o verniz do cinismo? Para quê escondermo-nos neles, se nos deixam tão expostos como as mãos de um bebé que tapa os olhos para se tornar invisível?

Se tudo passa, se até o stress passa, se até a vida passa, o interesse dos outros não fugirá à regra (a fugir, será para mostrar que a regra também passa). O interesse que nos interessa e o que não. O stress que nos stressa e o que não. As obsessões, as paixões, as alegrias, as tristezas, os rios, os mares, as chuvas, os sóis, as tempestades, os fogos, os corpos, as almas, as verdades, as mentiras, as ciências, as religiões. Os conceitos. Os preconceitos.

Agarremo-nos, portanto, a um único (e o maior) contra-senso: a consciência de que tudo passa. É verdade que, se tudo passa, a consciência também, mas aproveitemos o contra-senso no seu todo, ou seja, corpo e significado. No corpo, aproveitemos o hífen como ponte e passemos do contra para o senso. Pode ser que, lá chegados, o significado seja outro. Se não for, seja como for, há-de passar.

(ilustração de Adão Cruz)

5 comentários:

  1. Marcos, já li o teu texto uma vez. Mas, desta vez, não chega. Amanhã, vou lê-lo outra vez. É sintomático o número de vezes que empreguei a palavra. E não estou a brincar. Estou a falar a sério

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  2. Talvez sejam ecos do meu "vês?". Lá está: talvez. :)

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  3. Devo confessar que este texto é dos menos conseguidos que escrevi este ano, ou melhor, já no ano passado. Não que me distancie dele do ponto de vista semântico. Acho é, à distância, que podia ter sido muito mais simples a exprimir-me. Na parte final, por exemplo, como um daqueles guitarristas azeiteiros que fazem um solo arrepiante e interminável, deixei-me levar pelo virtuosismo e perdi de vista a eficácia da comunicação, coisa que muitas vezes merece o desdém de autointitulados eruditos mas traduz, ou pode traduzir, uma atitude de respeito para com quem dedica algum do seu tempo a ler textos como este.

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  4. Eu acho-o é difícil. Por isso é que o tenho que ler mais vezes. E quem sabe se este não é só teu e ninguém mais tem direito a invadi-lo?
    Talvez, amanhã, consiga chegar a alguma conclusão.

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  5. Marcos, hoje já percebi o teu texto. Mas não é o texto dum momento de optimismo, pois não? É mais dum momento de verdade, seja lá isso o que for. Não sei que idade tens mas parece que já viveste muito.

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