sábado, 2 de outubro de 2010

A luz era azul

Adão Cruz


Nota prévia do autor: Este poema é dedicado à Ethel, não por ser vazio de doçura, que ela não merece coisas amargas, mas porque ela disse que o poema azul se transformou num quebra-cabeças. Este sim, é um quebra-cabeças. O azul deste poema, azul e amargo, nada tem a ver com o azul doce do outro.





A luz do sol era azul...
lembro-me como se fosse hoje!
A luz azul azulava os claustros
as caras e o sentir.
Imaterial
pálida e fria.
As grandes janelas filtravam
a luz azul que entrava dentro de nós
como chuva miudinha.
Pela vida fora senti sempre um arrepio
ao recordar essa luz azul e fria.
As batinas negras dos jesuítas eram azuis e frias
frias e azuis como os olhos
a alma e a sombra.
A alma não era
nessa altura
apenas designação académica.
Por isso ela punha os braços de fora
e estrangulava a minha frágil personalidade
de adolescente
sem sexo nem liberdade.
Se Deus existisse e fosse justo
teria poupado Ignacio de Loyola
à mística Cristocêntrica
e ter-lhe-ia dado Catarina
Germana ou Leonor.
Se Deus existisse e fosse humano
teria posto A Freira no Subterrâneo
dentro da pureza dos meus lençóis
aquecidos de saudade
e vazio azul e frio.
A saudade excitava-me
vivia-me de dia e adormecia-me de noite.
Saudade do Caminho Novo
da minha fogueira quente e vermelha
do meu sol vermelho e quente
do meu campo
do meu rio
da minha noite de estrelas e luar.
A luz azul e fria
reacendeu-se ao fim de quarenta anos
e eu tive medo.
A imposição do azul
desfaz as formas e os sons
e remete para a cidade da morte.
Discordo de Kandinsky
no movimento do azul para o infinito
solene e metafísico
a caminho da eternidade tranquila.
A culpa foi daquela luz azul e fria!
O medo do azul abre as portas do inferno
e mostra lá dentro a coragem a arder.
Sem coragem não há saudade
último reduto da liberdade.
Coragem
liberdade
saudade
inverteram as horas e perderam o tempo.
Correm agora fora das veias
à velocidade de uma luz fria e azul
azul e fria.

 (ilust. Adão Cruz)

5 comentários:

  1. Hoje virei o alter ego da Clara que é Augusta Clara! Adão, eu queria esse poema para mim, guardado inteiro em mim, mas quem falou em quebra-cabeças foi a Clara (Augusta). Eu respondi-te com outro Azul. Sem roubar o que é do outro, sem querer ter posse, deixei que o azul entranhasse em cada pedaço que conheço e reconheço em mim.
    Ah, esse azul que me dás, por vezes tanto e tão pouco, respira agora comigo. Se estiver sol, procura a sombra e lá estarei azul a acompanhar-te feliz e triste, cansada e apressada saudosa de nós.

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  2. Ethel, ainda bem que ele confundiu o quebra-cabeças porque ficaste com um lindo poema. Ele tem tanta poesia que dá para todos.

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  3. Ainda cá volto ao poema. Tem graça que este, para mim, não tem nenhum quebra-cabeças. O outro é que tem.

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